Tony Goes

Efeitos especiais não ofuscam texto machista e retrógrado de 'Gênesis'

Em seus dois primeiros capítulos, superprodução bíblica da Record atacou as mulheres

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"Você fala como se a culpa fosse só minha", reclama Eva. "Você também comeu do fruto!" Adão não se faz de rogado: "Mas quem me convenceu? Me deixa em paz!". Pouco antes, o primeiro homem já havia aplicado uns safanões na primeira mulher, quando os dois foram expulsos do Jardim do Éden. Quem diria: a violência doméstica é tão velha quanto a humanidade.

A novela "Gênesis" estreou na terça passada (19) com fanfarra. Adiada em quase um ano por causa da pandemia, a maior superprodução bíblica da Record mereceu um lançamento de luxo, com direito até a um especial revelando detalhes dos bastidores.

Em todos os materiais promocionais, a emissora tratou o folhetim como se ele fosse quase que um documentário, reproduzindo fatos históricos com absoluta fidelidade. Chamou criacionistas para dar depoimentos em seus telejornais, tratando uma crença religiosa como verdade científica.

Foi muito criticada por isto, e também pela escalação de um elenco todo branco. Muitos são até louros e de olhos azuis, um tipo físico que não existia no Oriente Médio de cinco ou dez mil anos atrás. Mais uma vez, a Record perdeu a oportunidade de se alinhar com o mundo contemporâneo. ​

Por que não Adão e Eva negros, já que os mais antigos fósseis humanos foram encontrados na África? Mas o canal da Igreja Universal preferiu se ater aos clichês. Os atores escalados para encarnar o casal primordial, Carlo Porto e Juliana Boller (ela, bem melhor do que ele) parece ter saído diretamente de um comercial de pasta de dente dos anos 1980.

O que o marketing de "Gênesis" não deixou claro era que os diálogos dos primeiros episódios viriam impregnados de machismo e misoginia. Não é novidade que Eva tem uma posição subalterna na Bíblia: ela é criada depois de Adão, a partir de uma costela dele, e também é quem primeiro se deixa cair em tentação, seduzida pela serpente.

O roteiro de "Gênesis" não só carrega nessas tintas, como praticamente transforma Eva em vilã. Aliás, não só a ela: no segundo capítulo, o casal tem dois filhos, Caim (Eduardo Speroni) e Abel (Caio Manhente), e mais uma multidão de filhas reclamonas, que o Antigo Testamento nem chega a nomear. As meninas estão insatisfeitas com a dureza da vida que levam, num acampamento que remete à Idade da Pedra.

Adão, que nunca para de alfinetar sua esposa por causa do pecado original, dá um diagnóstico digno de quem acha que cometeu uma fraquejada: "Mulher, mulher! Tudo é um problema para vocês. Tivéssemos mais filhos homens, o clima seria bem mais tranquilo".

Pouco depois, lideradas por Renah (Ana Terra), as filhas de Adão e Eva se rebelam e vão embora, deixando os pais a sós com os dois filhos homens –e pondo em risco o futuro da humanidade...

A misoginia que transborda da boca dos personagens masculinos pode ser um recurso dramático. Talvez esses machistas sejam punidos em breve, mas eu suspeito que não. Porque o segundo capítulo reprisou uma frase dita por Deus a Eva, no primeiro: "E você agora vai precisar do homem, e sua carência por ele te dominará", diz o Todo-Poderoso em off, na voz de Flávio Galvão.

É simplesmente inaceitável que, em pleno 2021, com mulheres em postos de comando por todo o planeta, uma obra de grande apelo popular ainda insista nesse tipo de mensagem. Trata-se de uma distorção ainda mais grave do que a destruição dos dinossauros pelos anjos caídos, transformados em meteoros, mostrada no episódio de estreia.

Emilio Boechat, o autor convocado para chefiar os trabalhos de "Gênesis", rompeu seu contrato muito antes da estreia, reclamando da interferência de Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo. Cristiane fez algo parecido com Vivian de Oliveira, que deixou a emissora magoada mesmo tendo escrito “Os 10 Mandamentos” (2015), ainda o maior sucesso da dramaturgia da Record.

A equipe de roteiristas que escreve "Gênesis" conta com várias mulheres. Espero que todas elas não se sintam violentadas pelo que estão escrevendo –ou que, pelo menos, sejam regiamente bem pagas por isto.

“Gênesis” ainda conta com bons (não ótimos) efeitos visuais, além de músicas horrorosas entoadas pelos personagens. Já é um sucesso de audiência, tendo alcançado admiráveis 15 pontos no PNT (Painel Nacional de TV) –cada ponto do Kantar Ibope equivale a 268.278 domicílios). Mas também parece ser, além de propaganda explícita para a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), um panfleto retrógrado, que quer devolver a mulher à submissão.

Erramos: o texto foi alterado

A novela "Os 10 Mandamentos" foi escrita por ​​Vívian de Oliveira​, e não por Paula Richard. O texto foi corrigido.