'A moda retrocedeu ao cenário dos anos 1990', diz Paulo Borges, fundador da SPFW
Quase um ano após mudar o calendário de desfiles para se adequar a um modelo de lançamentos voltado para o varejo, o chamado "veja agora, compre agora", Paulo Borges, 55, diz que, quando a próxima São Paulo Fashion Week acabar, na sexta (1), estudará voltar atrás na decisão.
"Deixei claro que a troca seria um teste. Vamos [com as marcas] sentar e discutir se vale a pena continuar", conta, em entrevista à Folha.
Seria a terceira mudança de datas em cinco anos, fruto de um ajuste de expectativas das grifes participantes, angustiadas pelo vaivém da economia e pela crise conjuntural no consumo de moda.
"É um modelo que deixa claro para o consumidor que aquela roupa estará na loja logo após o desfile. Deu certo para muitas marcas, senão não haveria 32 desfilando". Ele diz, no entanto, que há resistência de alguns estilistas.
Olhar para o futuro é um dos mantras da temporada.
Uma parceria com a Microsoft exibirá no prédio da Bienal tecnologia de inteligência artificial aplicada à moda
A partir de uma base de dados com vários desfiles, uma máquina identificará o corpo e as informações da pessoa para, virtualmente, mostrar a marca ou estilo que combinariam mais com ela.
A decoração do prédio, fusão de estampas desfiladas por marcas brasileiras e obras de artistas plásticos, denota a vontade de deixar para trás a sombra da crise e injetar otimismo à programação.
Carlos Jereissati Filho, CEO do Grupo Iguatemi, Flávio Rocha, dono da Riachuelo, e Caito Maia, da Chilli Beans, são alguns dos nomes convidados a dar palestras nos corredores da Bienal do Ibirapuera, onde ocorrem os desfiles.
Esperança de dias melhores também norteia as conversas com a prefeitura. Após um corte de R$ 2,1 milhões no orçamento destinado ao evento, a Luminosidade, organizadora da SPFW, estuda com a gestão de João Doria Jr. modelos que integrem várias secretarias, e não apenas a SPTuris, como era até hoje.
"Isso amplia as possibilidades de patrocínio e projetos para a cidade como um todo", afirma Borges.
Leia a seguir a entrevista.
'COMPRE AGORA, VEJA AGORA'
Vamos discutir depois do evento se vale a pena continuar. Essa questão ainda está em aberto. Não é um pedido geral [para voltar ao modelo sazonal, de desfile seis meses antes do lançamento na loja]. É uma minoria. Cada estilista vem e me fala uma coisa.
Acho que, honestamente, a imprensa ajuda a complicar. Dizia que antes a roupa era fantasia, conceitual, e depois diz que é "comercial" quando mudamos o calendário.
A SPFW se adaptou nesse tempo para ajudar as marcas, nunca para se igualar a Milão, Paris ou Nova York [berço do 'see now, buy now']. Se fizesse como eles [os americanos] e passasse a cobrar das grifes para participarem, aí, sim, você ia ver quais tipos de marcas estariam desfilando.
Não penso a São Paulo Fashion Week visando lucro e mais lucro. O evento não é caixa registradora.
REFLEXOS DA CRISE
Quando comecei, em 1993, com o Phytoervas Fashion, vivíamos um momento político-econômico similar ao de agora. A criatividade estava submersa nos jovens e, depois de o mercado começar a se estabelecer, em 1996, houve um "boom" de novidades.
A moda voltou ao cenário dos anos 1990. Estamos no momento da virada, como em 1993, quando pequenas marcas estavam se mexendo, e o "mainstream" lidava com problemas gigantes para resolver.
Agora, os grandes estão tendo que diminuir de tamanho e arrumar a casa. Já os pequenos, provando novos modelos.
ANGÚSTIA CRIATIVA
Muita gente do nosso circuito de moda é saudosista. Pensam "ai, como era bom no meu tempo". O hoje da moda é o amanhã, ontem é só para história. Não pode ter essa expectativa emocional sobre o passado, se você trabalha com criação.
Vejo muita gente estagnada, com medo de mudanças e reclamando. O que falta, em geral, é um sentimento de pertencimento. O brasileiro gosta de apontar os outros. Ainda é colonizado, paternalista e sem sentido de coletividade. Isso se reflete claramente na moda.
PATROCÍNIO
Dos grandes eventos, a São Paulo Fashion Week é o que menos depende do poder público. Não usamos Lei Rouanet, ProAC, nada.
Com a prefeitura, estamos pleiteando duas frentes de investimentos para o ano que vem: ou verba oriunda dos cofres ou uma iniciativa integrada com várias secretarias com o objetivo de pensar projetos para a cidade que envolvam a SPFW, projetos em atrações, discussões, integração artística e cultural.
Não vislumbro aumento do aporte para 2018, mas 2019 ou 2020, sim. Por que não? Por outro lado, estamos sentindo otimismo dos patrocinadores, que já estão estudando as verbas para 2018. No ano passado, discutíamos agora pensando para o próximo mês.
NOVA MODA
A moda está mais voltada para o humano. Antes o sucesso era virar uma Gucci, hoje é ser menor. Graças a Deus o mundo se estressou com as planilhas, com o crescimento a qualquer preço e vai recuperar uma visão humana das coisas.
O "slow fashion" [coleções lançadas anualmente], o "upcycling" [reaproveitamento de roupas e resíduos] e a moda sem gênero são exemplos dessas reflexões. A moda agora identifica aquele que produz pouco para poucos como alguém de excelência.
SOM E AUTOIMAGEM
Moda não é só roupa, nunca foi. Vamos expandir as apresentações musicais de artistas jovens cujo visual seja um complemento da música.
A Microsoft criou uma tecnologia que coloca em prática a inteligência artificial aplicada à forma que as pessoas se veem. Mas um algoritmo nunca vai substituir a experiência da moda, porque moda é escolha. Mesmo que uma máquina diga como se vestir, a escolha nunca será dela.
Comentários
Ver todos os comentários