Prefeitura e escolas de samba lutam pela alma do Rio de Janeiro
Não deixa de ser irônico. Nas eleições municipais de 2016, a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba, do Rio de Janeiro) declarou apoio à candidatura de Marcelo Crivella a prefeito da cidade.
Crivella é bispo licenciado e umbilicalmente ligado à Igreja Universal do Reino de Deus (é sobrinho de Edir Macedo, o fundador da denominação). Em outras eras, a IURD fez campanhas pesadas contra o carnaval, que considera uma festa pagã e pecaminosa.
Mas, no ano passado, Crivella parecia um mal menor aos dirigentes das escolas de samba cariocas. Marcelo Freixo (PSOL), seu rival no segundo turno, ameaçava investigar a caixa-preta que é o financiamento dos desfiles.
Deu no que deu. Crivella venceu com folga e prometeu governar para todos os habitantes do Rio, sem impor uma agenda evangélica.
Não é bem o que está acontecendo. O novo prefeito já esvaziou a Coordenadoria da Diversidade Sexual, tornando-a subordinada à Secretaria da Saúde. Na sexta-feira (9), anunciou que irá cortar 50% dos recursos públicos destinados às escolas de samba. Cada agremiação receberá cerca de um milhão de reais a menos do que recebia antes.
A justificativa do prefeito foi talhada para enternecer os corações: este dinheiro iria para as 158 creches conveniadas com o município, para dobrar o valor diário (de R$10 para R$20) gasto com cada criança matriculada. Quem ousará ser contra dar mais leite para as criancinhas?
A resposta veio rápida. Nesta quarta (14), a LIESA anunciou que a maioria das escolas de samba (se não todas) do grupo Especial simplesmente não porá os pés no Sambódromo em 2018. O corte da verba teria inviabilizado os desfiles.
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Mas será que inviabilizou mesmo? São muitas as fontes de renda das escolas. Para começar, há a venda de ingressos e dos direitos de transmissão pela TV. No passado, as vendas dos discos com os principais sambas-enredo eram tão grandes que os compositores chegavam a sair no tapa para terem suas obras incluídas (hoje esses álbuns lideram, na época da folia, as paradas de serviços de streaming musical como o Spotify).
Agora ainda há a possibilidade de patrocínio corporativo. Empresas como a Nestlé e a P&G já bancaram desfiles para promover suas marcas. Até os governos da Venezuela (através da PDVSA, sua estatal petroleira) e da Guiné Equatorial, uma das mais sanguinárias ditaduras da África, financiaram as escolas cariocas. Sem falar no jogo do bicho y otras cositas más...
O que a LIESA pretende é ter a indústria hoteleira ao seu lado e lembrar que a arrecadação do município periga despencar se não houver desfile. Milhares de empregos também podem ser eliminados.
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Só que já faz tempo que o Sambódromo do Rio se elitizou, priorizando os turistas estrangeiros e as empresas que bancam os camarotes faraônicos. A verdadeira alma do carnaval carioca voltou para as ruas, com os milhares de blocos que as invadiram nos últimos anos.
Ou seja: é uma briga boa, e um debate pertinente. De um lado, o alcaide religioso atropela as tradições culturais da cidade e tenta impor sua fé à força, ainda que veladamente. Do outro, agremiações que se acostumaram com todo tipo de benesse, algumas bastante discutíveis, esperneiam para não perder nenhuma mamata.
No meio, uma festa que venceu o racismo e a repressão policial - mas conseguirá vencer a comercialização desenfreada?
E aí, de que lado os cariocas vão ficar?
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