Não é pecado criticar Fernanda Montenegro
Eu não me perdoaria desta vez. Depois de muitos anos longe dos palcos, Fernanda Montenegro já vinha encenando o monólogo "Viver Sem Tempos Mortos" desde 2009. Esta é a segunda temporada da peça em São Paulo, que termina no próximo domingo. Eu não podia perder --de novo.
Comprei dois lugares para a sessão extra de quinta, 8 de dezembro, e lá fomos nós, um amigo e eu, para o teatro Raul Cortez. Apesar do trânsito infernal, conseguimos chegar a tempo. Fernanda só entrou em cena dez minutos depois da hora marcada, para dar uma colher de chá aos retardatários.
É só uma hora de espetáculo, e o cenário se resume a uma única cadeira. Quase ri alto quando o alto-falante disse que era assinado por Daniela Thomas. Com todo o respeito a Daniela, uma das maiores cenógrafas, diretoras e agitadoras culturais deste país, mas "cê jura"?
O minimalismo continua na interpretação de Fernandona. Sentada o tempo todo, ela pouco mexe os braços. Só de vez em quando, para enfatizar uma ou outra passagem. Também usa a voz com economia, sem nunca se exaltar. Mas que voz, hein? Ainda mais grave com o passar do tempo, mas cada vez mais rica em nuances e intenções.
O público provavelmente lotaria a sala do mesmo jeito se ela lesse trechos da proverbial lista telefônica. Todos estavam ali para vê-la, para se sentir na presença de uma divindade do teatro, pouco importa o texto escolhido. Mas aos poucos fui me esquecendo da sósia de Bete Gouvêa que via no palco e fui mergulhando na vida de Simone de Beauvoir.
Fernanda me enfeitiçou. Praticamente só com a voz, ela me fez ver Paris durante a guerra, o casamento moderno de Simone e Jean-Paul Sartre, a morte deste. Não me surpreendeu em momento algum, não usou nenhum recurso que eu desconhecesse, não me pegou com a guarda abaixada. Mas cumpriu todo o roteiro que eu esperava. Até mesmo a ovação que recebeu no final.
Minha supresa aconteceu ao sair do teatro. "Não gostei", disse o amigo que me acompanhou. "Como assim?? Fala baixo!" Não queria que as pessoas em volta ouvissem, parecia alguém blasfemando dentro de uma igreja. Mas ele não se intimidou. "Achei o texto chato. Me deu um soninho E Fernanda está monocórdia." Fiquei esperando cair um raio do céu para fulminá-lo.
Foi então que me dei conta do ridículo em que embarquei. A própria Fernanda já disse que acha uma chatice esse troço de ser uma unanimidade nacional. Vamos assisti-la com o piloto automático ligado para "adorar". Meu amigo quebrou esse pacto silencioso, e não gostou da peça. Achei saudável. E aposto que Fernanda não se importaria. Afinal, como dizia Nélson Rodrigues --autor que ela interpretou algumas vezes-- toda unanimidade é burra. Nada como uma opinião dissonante para nos obrigar a pensar de vez em quando.
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