Fotógrafo retrata mulheres fisiculturistas e fala sobre preconceito contra hipertrofia feminina
Em curso há 20 anos, ensaio Fortia Femina, de Andre Arruda, mostra atletas de fisiculturismo
Com a pele bem iluminada para destacar e revelar textura e detalhes de cada músculo e curva, as atletas de fisiculturismo retratadas por Andre Arruda surgem como verdadeiras obras de arte. Inspirado nos estudos de anatomia renascentistas de Andreas Vesalius, o ensaio Fortia Femina do fotógrafo começou a ser feito em 2003, sendo um dos mais longos da história da fotografia no Brasil e um dos três mais importantes sobre fisiculturismo no mundo.
Ao longo desses 20 anos, foram cerca de 40 sessões, das quais 23 estão incluídas no projeto. A ideia é que o material um dia se transforme em um livro com exposição e em um filme documentário de longa-metragem —ainda sem data para serem lançados, pois para o fotógrafo ainda falta um bodybuilder para fechar o conjunto.
O fascínio da hipertrofia muscular, entretanto, se equilibra sobre uma realidade difícil para as praticantes. De um lado, a beleza da escolha dessas mulheres como protagonistas de seus corpos; do outro, uma sociedade que ainda teme e se choca com a força física feminina.
Segundo Arruda, que conversou com a Folha sobre o projeto, o preconceito contra o corpo das mulheres praticantes da hipertrofia muscular chega a ser mais intenso que o manifestado contra os corpos transexuais e travestis.
Ao longo das duas décadas retratando essas mulheres, ele colecionou histórias também de agressão contra seu trabalho e relatadas pelas atletas. Uma de suas primeiras modelos, que faleceu em decorrência de uma cirurgia estética no glúteo, feita em um clínica clandestina, por exemplo, chegou a ser espancada e a ter o braço quebrado quando andava pelas ruas do Rio de Janeiro.
"Felizmente eu acho que isso não acontece mais. As atletas me dizem que existe preconceito, mas não como antes. É aquela história do Narciso… E são dois tipos de Narciso: o que se aproxima daquilo que ele mais ama e o que se aproxima daquilo que ele mais teme e odeia. O fato de o cara se sentir atraído por uma representação que acredita que seja um homem, incomoda muito ele", afirma o artista.
Arruda, que atua como fotojornalista e trabalhou em redações lendárias, como a do Jornal do Brasil, diz que, do seu ponto de vista, nunca viu nas fisiculturistas traços masculinos, até porque elas sempre estavam buscando cirurgias, como implante mamário, para trazer sua feminilidade à tona. "Eu sempre via curva, sempre vi a imagem de uma borboleta saindo do casulo", diz.
Em 2009, quando buscava patrocínio para a primeira exposição do Fortia Femina (do latim, "Força Feminina"), Arruda deixou algumas fotos no escritório de um executivo e, três dias depois, recebeu uma ligação para retirar o material. "O elemento rasgou uma das fotos dizendo que não patrocinava esse tipo de pornografia. Ele achava aquilo pornografia! Achei muito interessante a raiva com que ele rasgou aquela foto, muito significativo de como esse ensaio incomoda. Não está bonitinho, não são fotos bonitinhas de mulher gostosa", destaca.
A foto rasgada era da atleta Ana Claudia Pires, a mesma que foi agredida nas ruas do Rio por se "parecer com um travesti", e foi guardada por Arruda para compor a introdução do livro que ele planeja lançar com coletânea dos 20 anos do Fortia Femina. A proposta é que o material renda também um documentário, a ser roteirizado por uma mulher e dirigido pelo próprio Arruda —parte das entrevistas coletadas com as modelos pode ser vista no site do fotógrafo.
MOVIDA A DESAFIOS
A personal trainer e atleta de fisiculturismo Roberta Coletti, hoje com 36 anos, foi uma das modelos do trabalho. Clicada em dezembro de 2021, ela começou no fisiculturismo há 14 anos por convite de um médico, que propôs transformar o físico dela no cartão de visitas dele. "Com 10 meses de projeto, meu corpo mudou drasticamente. Ele me ofereceu a primeira oportunidade de quem sabe começar a competir. Para mim, era tudo muito novo, mas resolvi encarar como mais um desafio, porque sou uma pessoa movida por desafios", celebra Coletti.
Foi também o que ela considerou a chance de mostrar sua essência. "Sempre fui uma pessoa diferente, sempre gostei do diferente. Eu nunca tive problema de mostrar quem eu realmente era, de defender minhas escolhas e foi uma grande honra ser convidada pelo Andre, vi que era um profissional muito sério e atenderia justamente o que buscava, o reconhecimento do meu esporte e também da nova autoimagem que a mulher precisa passar de superação independente do que o resto da sociedade impõe para a gente", conta a atleta.
Coletti diz que existe um preconceito com o fisiculturismo de modo geral, mas sobretudo com o feminino, vindo não apenas dos homens, mas de outras mulheres. "A sociedade impõe um tipo físico, já tem uma visão um pouco pré-determinada sobre o que julgam como certo."
Para ela, o trabalho de Arruda é importante por reforçar que existe mais de um tipo de representação da mulher brasileira, dando voz a quem atua no esporte. "É muito importante divulgar. No que diz respeito ao olhar do outro, sempre passei por essa questão de gerar muitos comentários, mas acaba que diz respeito mais sobre como nós nos enxergamos. Quando estamos bem resolvidos com o que a gente vê, o que o outro acha sobre mim já não importava mais. Hoje eu gosto do que vejo e se isso agride alguém, não me atinge", reforça a atleta.
Arruda diz que a ideia do Fortia Femina nasceu durante uma passagem dele por Nova York, quando viu pela TV uma competição feminina de fisiculturismo com uma iluminação muito bonita. "Admito que era [no começo] um apelo apenas visual. Eu não conhecia as histórias dessas atletas, mas depois eu fui aprofundando essas questões com elas, de por que elas queriam ser daquele jeito, e a resposta era simples: porque eu gosto!"
Arruda afirma ainda que as fisiculturistas não são modelos comuns, pois demandam um alto preparo antes das fotos para uma maior definição dos músculos e vascularização. "Geralmente, as atletas me pedem no mínimo dois meses —algumas até 4 meses— de preparação até a sessão de fotos. Elas entram em um regime de treino muito mais pesado para ter uma volumetria muito maior do corpo, como nos campeonatos", diz.
O fotógrafo conta que ficou maravilhado com as possibilidades daqueles corpos tão diferentes dos clicados para revistas masculinas e que hoje considera a hipertrofia muscular uma escolha que aponta para uma realidade em que a mulher é protagonista de si. "Nas questões decisórias, ela faz o que quiser com o seu próprio corpo. Eu entendi, ainda que intuitivamente, que aquele caminho ia ser um caminho sem volta para o corpo feminino", avalia.
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