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O bilhete secreto que levou chinesa adotada por americanos a reencontrar pais biológicos 20 anos depois

Kati descobriu que seus pais biológicos apareceram em um documentário
Kati descobriu que seus pais biológicos apareceram em um documentário - BBC


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Selo BBC Brasil

Os pais biológicos de Kati, Xu Lida e Qian Fenxiang, passaram anos se perguntando o que teria acontecido com a filha que abandonaram ainda bebê. Por causa da política do filho único que vigorava à época na China, criar a criança seria custoso demais para a família, que era pobre e já tinha uma filha.

A decisão levou Kati para o outro lado do mundo: ela acabou sendo adotada ainda bebê por um casal americano. Enquanto crescia cercada de amor em outro país, seus pais biológicos sofriam com a incerteza de não saber nem sequer se a filha estava bem. "Não queríamos abandoná-la na rua, não tínhamos escolha", conta o pai biológico de Kati.

Por décadas, a política do filho único foi usada para controlar o crescimento populacional na China. As penalidades para quem tivesse mais de um filho eram severas, e incluíam multas e aborto forçado. Quando Qian Fenxiang ficou grávida, ela e o marido consideraram a hipótese de interromper a gestação. 

"Minha mulher estava grávida de sete meses, e nós estávamos considerando fazer um aborto. Mas eu conseguia, frequentemente, sentir o bebê se mexendo. Eu me sentiria mal se tivéssemos abortado. Decidimos ficar com ela", conta Xu Lida. "Pensei que, mesmo que a gente não tivesse condições de criá-la, poderíamos entregar para alguém."

O dia em que abandonou a filha ficou registrado em detalhes na memória do pai. "Na manhã do terceiro dia após seu nascimento, eu preparei leite, a segurei nos braços e abracei por um tempo. Então, caminhei até o mercado. Ela não chorou. Ela estava dormindo." "Dei um beijo nela. Sabia que era o último adeus. E aí me afastei." 

'SIMPLESMENTE LINDA'

Um ano depois, um casal americano, Ken e Ruth Pohler, viajou de Michigan para Suzhou, na China, para adotar um bebê. Foi então que conheceram a menina e a chamaram de Kati. "Ela era simplesmente linda", lembra Ruth.

A primeira dúvida da criança sobre sua origem surgiu cedo. "Kati devia ter cinco anos quando me perguntou de que barriga ela veio", conta a mãe adotiva. 

Que respondeu: "Você não veio da minha barriga. Você veio da barriga de uma moça na China, mas você veio do meu coração. Você nasceu do meu coração". "Ela então saiu para brincar e fazer outras coisas. Era tudo o que precisava saber, e ela estava satisfeita com isso", diz.

Kati diz que em alguns momentos sentiu curiosidade em saber quem eram seus pais biológicos, mas o assunto nunca surgiu naturalmente em conversas com a família. "Cresci num lugar bem 'branco', bem caucasiano. Mas minha comunidade era muito próxima. Eu me via como diferente, mas era muito bem aceita", relata.

"As coisas começaram a mudar quando eu deixei essa comunidade, e nem todos sabiam quem eu era. Eles esperavam de mim um certo comportamento que eu não sabia que tinha que ter."

'DOS PAIS SEM CORAÇÃO'

Ao abandonar a filha na rua, em um mercado, o pai biológico também deixou um bilhete endereçado a quem viesse a adotar a menina. Kati foi encontrada logo depois por transeuntes e entregue a um orfanato.

"O orfanato nos deu um documento escrito em chinês... Era uma mensagem dos pais biológicos para os pais adotivos. Dizia que eles estavam entregando a filha não porque queriam, mas por causa de como as coisas estavam na China naquele momento", diz Ken Pohler.

A carta dizia: "Minha filhinha nasceu em 1995, de manhã, em Suzhou. Por causa da pobreza e de outros problemas, não tivemos outra escolha senão abandonar nossa filha nas ruas. Se vocês tiverem simpatia por nós, pais, por favor, nos encontrem na Broken Bridge (Ponte Quebrada), em Hangzhou, daqui a dez ou vinte anos".


A carta era assinada: "dos pais sem coração". Xu Lida explica que sugeriu o encontro para dali a dez ou vinte anos por achar que os pais adotivos não iriam deixar que vissem a criança quando ela ainda fosse bebê.

Ken diz que compreendeu a aflição dos pais biológicos. "Nós queríamos dar a eles alguma garantia de que ela estava em uma boa família, de que estava sendo cuidada e de que nós a amávamos muito. Queríamos que os pais biológicos soubessem disso, embora não pudéssemos ir até lá nos encontrarmos com eles."

A PRIMEIRA TENTATIVA DE ENCONTRO

A Ponte Quebrada de Hangzhou é um famoso ponto de encontro. Todo ano, no dia 7 de julho, as pessoas vão até lá para se reencontrarem com entes queridos. Quando Kati fez dez anos, Ken e Ruth enviaram uma mensageira à ponte, com a missão de dizer aos pais biológicos que a filha deles estava bem.

"Nós ficamos prontos bem cedo, às 7h. Eu estava segurando um leque com o nome dela, 'Jingzhi'. Eu olhei por todos os lados, principalmente para pessoas com crianças", conta Xu Lida.

Mas as horas foram se passando... "Esperamos até 15:30. Perdemos todas as esperanças. Nossos vizinhos sabiam que estávamos esperando pela nossa filha na ponte. Eles falaram: 'Dissemos a vocês que não adiantaria. Eles nunca apareceriam'."

A mensageira enviada por Ken e Ruth se atrasou. Mas ela conversou com alguns repórteres que estavam na ponte naquele momento, e uma emissora de TV pediu para que os pais biológicos se manifestassem.

Em busca de notícias da filha, Qian e Xu Lida decidiram dar uma entrevista à TV. A história ganhou visibilidade em toda a China. Mas a repercussão assustou os pais adotivos de Kati, que não queriam que ela passasse por uma exposição tão grande e encarasse um reencontro com os pais biológicos ainda criança.

"Ela era apenas uma menina de dez anos. Não queríamos que alguém da China entrasse em contato com ela dizendo que era seu pai biológico. Não achávamos que ela estava preparada para isso", diz Ken.

"O meu medo era que eu pudesse perder a minha filha. Talvez pudessem levá-la de volta, porque agora sabiam quem eram os pais. Eu tinha criado laços, ela era minha filha. Nós a adotamos. Não queria qualquer conexão (com a família biológica)", admite Ruth.

Por anos, os pais biológicos de Kati continuaram a ir à ponte todos os anos, no mesmo dia 7 de julho. "Desde 2004, eu visitei a ponte anualmente. Sabia que não havia muita esperança. Muitas vezes eu passava o dia olhando para o lago, esperando que a minha filha aparecesse", conta Xu Lida.

A DESCOBERTA

Do outro lado do mundo, Kati não sabia de nada do que tinha acontecido. Isso até o ano passado, quando completou 20 anos. Ela se lembrava de ter visto, em algum momento da vida, um bilhete em mandarim, mas não tinha certeza se era sua imaginação ou uma memória real.

"Um dia, no carro, eu perguntei para a minha mãe: 'O que você sabe da minha adoção?'. E ela disse: 'Ah, é... Tem uma coisa que provavelmente a gente devia ter te contado há um tempo'", conta Kati.

Ela descobriu que os pais biológicos dela apareceram num documentário chamado "Longa Espera pela Volta para Casa", e que o cineasta Changfu Chang estava em contato com ambas as famílias --a biológica e a adotiva.

Para ela, foi um baque saber que a verdade foi ocultada por tanto tempo pelos pais biológicos. "Nós não sabíamos se ela queria saber, porque algumas crianças não querem", justifica Ken.

"Eu entendo a lógica deles, mas acho que é uma lógica ruim. Eles diziam: 'Queríamos ter certeza de que você estava pronta e blá-blá-blá. Mas acho que você nunca estará preparado para isso", rebate Kati.

Em busca de respostas, a jovem assistiu ao documentário de Changfu Chang, que contava a saga dos seus pais biológicos. No filme, Qian explica que teve que dar à luz longe dos hospitais e sem ajuda médica, pois precisariam apresentar à clínica uma autorização para o parto.

A mãe biológica também diz que queria entregar a filha a algum conhecido, para que conseguisse visitá-la, mas que não encontrou quem pudesse adotá-la. "Foi quando meu marido disse que podíamos deixá-la no mercado."

Kati se comoveu com o relato dos pais biológicos e com a dor que eles demonstravam sentir por não poder terem contato com a filha. "Eu me senti mal por toda a culpa que eles sentiam", diz. A jovem decidiu, então, voar até a China para encontrar os pais na ponte, da forma como eles haviam planejado.

PEDIDO DE PERDÃO

O encontro, registrado pelo cineasta Changfu Chang, foi emocionante. A mãe de Kati chorava copiosamente, e não parava de pedir perdão à filha. "Finalmente eu te vi, finalmente te encontrei. Mamãe sente muito, sente muito", repetia Qian à filha.

Depois de finalmente conhecer os pais biológicos e a irmã mais velha, Kati passou alguns dias com a família. "Tivemos vários pequenos momentos que me mostraram que eles se importavam muito comigo. Foi engraçado: uma das primeiras coisas que a minha mãe biológica disse foi que eu era muito magra. Aí eu olhei para minha irmã e ela é bem mais magra que eu, mas ela (a mãe) estava tão preocupada... Tão preocupada que me fez comer de tudo durante toda a viagem. São essas pequenas coisas."

Os pais biológicos conversaram por Skype com os pais adotivos e agradeceram por eles terem cuidado de Kati. Compreenderam que nunca perderiam a filha. "Nós a amamos muito. Não perdemos nada. Estamos felizes por ela", diz Ken.

"Estou feliz por termos chegado até aqui, e espero que ela alcance a paz e o contentamento. E se isso significa que desenvolva um relacionamento com eles, está tudo bem", completa Ruth.

NOVOS LAÇOS

O segundo adeus foi bem menos duro que a primeira despedida, vinte anos atrás. Todos carregavam consigo a certeza de que os laços não seriam mais rompidos. Kati voltou à faculdade, e está empenhada em aprender mandarim. A mãe biológica envia mensagens de "bom dia" e "boa noite" todos os dias.

"O amor é imenso. Eu sei que meus pais adotivos me amam, e agora tenho todo esse novo amor que eu nem sabia que existia, mas que sempre esteve aí", resume Kati depois da jornada em busca de suas origens.

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