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BBB21

Depoimento: Somos todos Karol Conká e Lucas Penteado

Cantora assumiu tortura psicológica contra o ator no BBB 21, e a culpa é nossa

Karol Conká e Lucas Penteado - Fabio Rocha/Globo
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São Paulo

Nós, que estamos do lado de fora da casa mais vigiada do Brasil, reformulamos a perseguição e a atualizamos para a era digital. Como canta o rapper Djonga em parceria com Cynthia Luz: "minha geração chama família os colega de dias/ E xinga de filha da puta os família de anos/ Se a velha discordou de tu, ela não é mais sua tia/ E ‘cê quer falar de empatia, mano? Tá brincando?!".

Somos todos Karol Conká porque nós aceitamos perseguir, maltratar, torturar e isolar aqueles que erraram conosco. Porque aceitamos chamar de agroboys os participantes brancos e encorpados do reality porque pessoas que se parecem com eles erraram antes. E agora assistimos boquiabertos a essas mesmas pessoas, brancas e encorpadas, entregarem alguns dos poucos momentos de lucidez dentro daquela casa até o momento.

Errar é humano e dizemos isso o tempo todo com a boca cheia quando quem errou fomos nós ou alguém a quem queremos proteger. Não passemos a mão na cabeça de Lucas Penteado pelos seus erros, mas nos lembremos que somos todos Lucas Penteado porque não só já erramos como erraremos outra vez.

Falta diálogo na geração que mais tem ferramentas para se comunicar. Se antes uma reconciliação poderia demorar dias quando feita por cartas, hoje, ela demora anos quando um tuite disponível em segundos atinge a noosfera, a esfera do pensamento humano.

Enquanto a Karol Conká impedia que Lucas se sentasse com eles à mesa, você, caro leitor, deixava a mesa quando o seu tio bolsonarista se sentava; você, cara leitora, revirava os olhos e encerrava mais cedo o almoço em família porque o seu sobrinho adolescente cheio de sonhos revolucionários defendia políticos de esquerda.

Enquanto Karol Conká usa a cozinha como palanque para coagir todos contra Lucas, você usa o Whatsapp para destilar ódio contra os petistas, bolsonaristas, contra as mulheres que anseiam por aborto seguro, contra os negros que querem chegar vivos aos 30 anos e por isso tomam as ruas da cidade, contra os homens e mulheres trans que a sociedade insiste em não respeitar sob o discurso de antes precisar entender —a ordem é o exato oposto, respeitar para entender.

Peço desculpas, pois, emocionado, esqueci do plural de modéstia. Eu também cancelei meus tios por não entenderem que sou um jovem preto de pele clara. Demorei anos para entender que era mais fácil me sentar e conversar. Hoje, meus tios entendem minha dor —dentro do possível— e respeitam minha luta e minha trajetória. Eles me escutam e, mais importante do que isso, eu também aprendi a escutá-los.

Mas não pensem que eu não me irrite, que não perca a paciência, que não os cancele vez ou outra. Erro porque erramos todos, mas a sacada é buscar a reparação desses erros. Porque vacilos, mais cedo ou mais tarde, são cobrados.

O que Karol Conká está fazendo é abjeto. É de uma violência psicológica e simbólica indescritível, mas também é o retrato do tuiteiro médio, como bem escreveu alguém a quem sigo.

O que está acontecendo dentro da casa machuca a todos nós que vez ou outra já fomos isolados, excluídos e maltratados. No entanto, jovens negros como Lucas e eu sentimos isso com mais frequência. Vou tentar descrever.

A cabeça pesa. Os olhos procuram o chão sempre que estamos na companhia de outro ser humano. A vergonha por ter cometido erros nos toma e se torna impossível olhar qualquer outra pessoa nos olhos. A fome se vai. A vontade de ficar deitado ou sentado em um lugar onde ninguém possa nos ver cresce, porque se ninguém puder nos ver poderemos, pelo menos, levantar a cabeça, existir de novo.

Desculpas não servem quando se é negro, embora sejam essenciais. Os pedidos de desculpa são, na verdade, um convite à humilhação. Porque não há segunda chance para uma pessoa negra, menos ainda para um jovem. As lágrimas vêm, mas quando se é homem, segura-se. Chorar é um sinal de fraqueza. A masculinidade tóxica adiciona uma camada extra de sofrimento.

E então surge o valentão que, para a surpresa de tantos, pode ser uma mulher negra. Porque a perversidade do racismo é criar a autodepreciação. É destituir de direitos os negros a tal ponto que as pessoas negras reproduzam as violências raciais e simbólicas umas com as outras sem que uma pessoa branca intervenha. É o racismo que se retroalimenta.

Nós estamos acostumados a isso, mas não devíamos. Estamos acostumados a ver policiais negros executarem jovens negros nas periferias. Estamos acostumados a ver comediantes negros fazerem piadas racistas. Nós não estávamos acostumados a ver uma militante negra e que entende a dor do seu povo infligir tanta dor a um outro negro.

O que acontece no BBB21 só acontece porque Lucas é um jovem negro. Seu erro foi angustiante. Na verdade, foi assustador. A raiva que ele tem guardada dentro de si, no entanto, é algo que muitos jovens negros conhecem. Eu conheço. Eu tive essa raiva descontrolada por anos na minha vida. Quando eu sou estúpido com alguém, eu sou muito. No entanto, a terapia e as pessoas com grande empatia que encontrei ao longo do caminho me ensinaram a lidar com a raiva que o racismo alimenta dentro de mim.

Lucas tem pela frente um longo caminho, mas não apenas ele. Karol também. Nego Di e Kerline. Camilla e Gil. Fiuk e Lumena. Projota e Caio. Você e eu. Que tenhamos a humildade de pedir perdão, mas sobretudo, que tenhamos também a humildade necessária para perdoar, porque dia sim somos todos Karol Conká , dia não somos Lucas Penteado.

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