'Pantanal': Segunda mulher de Tenório foi 'descoberta' por autor no Instagram
Aline Borges e sua família trazem a questão racial para o debate na novela
Aline Borges e sua família trazem a questão racial para o debate na novela
Apesar de já ser citada há bastante tempo na trama, é só neste sábado (11) que os telespectadores de "Pantanal" (Globo) vão ser apresentados a Zuleica, a segunda mulher de Tenório (Murilo Benício). Bígamo, ele já era casado com Maria Bruaca (Isabel Teixeira) quando começou a manter a outra família.
Na pele da personagem estará a atriz Aline Borges, 47, que tem no remake da trama de Benedito Ruy Barbosa sua maior oportunidade na televisão. Apesar de já ter feito papéis secundários em outras novelas da Globo, ela foi escalada para o papel, vivido na versão original por Rosamaria Murtinho, após ser vista nas redes sociais pelo neto do autor, Bruno Luperi, responsável por atualizar a trama.
A atriz havia acabado de assistir a uma live do grupo Potências Negras no Dia da África de 2020, na qual a assessora jurídica baiana Francine Cardoso ensinava amarrações de turbantes. Ela decidiu fazer uma nela também, no que foi acompanhada pela filha, Ninoca, e publicou um vídeo das duas na internet.
"O Bruno Luperi viu um vídeo meu no Instagram e, nesse vídeo, eu falava sobre a importância do turbante", lembra a atriz em depoimento exclusivo para o F5. "Eu tinha acabado de fazer uma oficina sobre turbante. Fiz junto com minha filha, falando sobre a importância da gente entender nossa história e todo esse processo de apagamento que a gente sofre."
Esse contato com a própria ancestralidade era importante porque, na nova versão da trama, Zuleica vai ganhar uma camada a mais —originalmente a personagem era branca. Aline comemora o fato de estar reinterpretando o papel já vivido por "um grande ícone da teledramaturgia", mas também que este tenha lhe ajudado a se reconectar com suas origens.
"Quando eu entendi que seria uma família preta, porque o autor queria trazer questões raciais, essa pauta para a história, aí, então... Nossa Senhora!", diz. "Eu venho de uma família de pessoas pretas que não se reconhecem, não se reconheciam, talvez estejam agora, nesse momento, se abrindo um pouco para isso."
Ela diz que esse processo não foi sempre tranquilo dentro de casa. "Minha mãe, meu pai, não reconhecem suas origens", lamenta. "Eu fui criada entendendo que eu não era uma mulher preta, fugindo das minhas raízes, negando a minha ancestralidade."
"Minha mãe, quando eu era pequena, colocava pregador no meu nariz para que ele ficasse mais fino, ela colocava touca no meu cabelo, alisava, tudo que ela pudesse fazer para fugir dessa identidade racial, para fugir dessa negritude, ela fazia", lembra. "Não por mal, ela queria me proteger do mundo. A gente vive num mundo racista, num país racista."
Aline diz que ela própria já se pegou praticando o racismo estrutural, antes mesmo de saber do que se tratava. "Eu tenho um irmão gêmeo que é negro retinto, o meu irmão bem preto e eu mais clara", conta. "Eu vi meu irmão passar por situações dentro de casa, que me fizeram ao longo da vida não querer ser preta. Porque eu não queria sofrer."
Ela dá um exemplo, que aconteceu quando ela tinha 17 anos. "Fui morar numa outra cidade [Juiz de Fora, no interior de MG] e estudar num colégio particular", diz. "E lá, nesse colégio particular, não tinha nenhuma pessoa preta. Era um bairro de classe média alta. Quando as meninas vieram conversar comigo na hora do recreio, fiquei com vergonha de dizer que eu tinha um irmão preto."
"Eu inventei um outro irmão", lembra. "Disse que ele tinha olhos claros, pele parecida com a minha e cabelo liso jogado para trás. E eu segui com aquela mentira e um dia meu irmão foi a Juiz de Fora e queria me encontrar na porta da escola para matar a saudade. Eu não tive coragem de dar o endereço a ele porque fiquei com vergonha. Que loucura que é isso, que crueldade."
"Meu irmão ficou me esperando a quatro quarteirões da escola", comenta. "Eu me despedi das minhas amigas, sem entender porque eu tinha feito aquilo, com uma vergonha... Pela primeira vez eu entendi um pouco o que o racismo era capaz de fazer."
Foi só recentemente, aos 42 anos, que ela se aproximou com mais profundidade da pauta racial, ao participar do espetáculo "Contos Negreiros do Brasil". "A partir daí, quando eu me reconheci naquele espetáculo, tudo mudou na minha vida", afirma. "Eu comecei a me conectar com minhas raízes de mulher preta. Comecei a entender minha missão como artista, como mulher preta que reconhece sua identidade."
Ela avalia que, enquanto fugia de sua ancestralidade, acabava fechando portas. "Eu não era nem branca, porque eu não me encaixava no perfil de mulher branca; nem era preta. Eu ficava ali no meio do caminho, me distanciando das minhas raízes", diz. "Quando me chegou esse personagem, eu entendi que ele só me chegou porque eu tinha me reconhecido como mulher preta."
E a notícia de que entraria em "Pantanal" não poderia ter chegado em melhor hora. "Estou há 27 anos nessa profissão e nunca tive ninguém que me desse a mão para me puxar", conta. "Fui muito na resistência, venho de uma família simples, de Parada de Lucas [zona norte do Rio]. E lembro que quando meu pai e minha mãe entenderam que eu queria fazer teatro, todo mundo foi muito contra, falaram: 'pelo amor de Deus, vai estudar'. Como se não fosse preciso estudar para ser atriz."
Agora, ela revê sua trajetória e não esconde o orgulho de chegar onde chegou. "Essa personagem que chega nessa trama onde tem pouquíssimas pessoas pretas para discutir questões raciais, é um papel importantíssimo, que me faz entender toda a minha história, que dá sentido à minha história, à minha profissão como artista, à minha missão como ser humano", celebra. "Eu me emociono muito de entender a responsabilidade e como está tudo conectado."
"Essa personagem não me chega à toa", afirma. "Ela chega para me ensinar, me fortalecer enquanto mulher preta, e também para que minha história –que atravessa milhares de mulheres pretas– sirva de exemplo para que todos entendam a importância de resgatar suas conexões."
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