Nerdices

A volta das HQs: Filmes de super-heróis e séries fazem crescer interesse por quadrinhos

Números de mulheres quadrinistas aumenta no Brasil

Felipe Tesser e sua noiva, Vanessa Felfele

Felipe Tesser e sua noiva, Vanessa Felfele Felipe Tesser

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São Paulo

Quem assiste aos seus super-heróis favoritos nos cinemas hoje muitas vezes nem se lembra de que aqueles personagens nasceram, na verdade, de rabiscos em páginas vendidas como revistas. "Capitã Marvel", "Pantera Negra" e "Deadpool" são alguns dos filmes que ocuparam mais salas de cinemas nos últimos tempos –sem falar de “Vingadores: Ultimato", que, no Brasil, já é o mais visto da história.

Com lançamentos a cada bimestre do universo cinematográfico da Marvel e da DC, fica difícil não se interessar pelas r evistas em quadrinhos, origens dessas histórias que conquistam novos fãs a cada dia. "Acredito que o público crie um interesse maior pelos quadrinhos. Percebo as pessoas do meu círculo social lendo mais, ou porque eu empresto, ou porque leem pela internet", afirma a advogada mineira Natalia Freitas, 25, que atualmente tem uma coleção de mais de 150 HQs.

As histórias em quadrinhos não se restringem às telas do cinema. Elas também têm ganhado espaço nas plataformas de streaming. Foi o que aconteceu com "O Mundo Sombrio de Sabrina", HQ que faz parte da Archie Comics desde os anos 1990 e se transformou em série da Netflix, em 2018.

O mesmo aconteceu com "Umbrella Academy", escrita pelo vocalista da banda norte-americana My Chemical Romance, Gerard Way, e ilustrada pelo brasileiro Gabriel Bá, que escalou até Ellen Page para o elenco. As histórias são publicadas pela editora Dark Horse Comics, a mesma de "Hellboy" e "Alien Vs. Predador", que também viraram filmes.

"Esses lançamentos fizeram com que as vendas dos quadrinhos aumentassem. Assisti a vídeos com vendedores dizendo que a reposição de ‘Umbrella Academy’ era muito pequena, e após o lançamento da série, toda semana aparece alguém querendo comprar”, diz o estudante piracicabano Gabriel Mateuzzo, 20. 

Esses são só alguns exemplos da lista de séries, que ainda inclui "Runaways", "Lucifer" e "Jessica Jones". A tendência é mais forte para aqueles que já tiveram uma infância marcada pelos quadrinhos. Geralmente, os jovens iniciam a leitura ainda pequenos, por exemplo, com as histórias de Maurício de Souza e da Turma da Mônica.

"Comecei pela Turma da Mônica quando tinha cerca de seis anos de idade. Meus pais já consumiam, e minha mãe sempre me incentivou a ler porque dizia que a entrada para a leitura eram os quadrinhos. Eu comprava mas era meio descartável, não tinha o colecionismo. Tenho o privilégio de ter tido condições em casa e poder ler o que queria”, relata Mateuzzo.

Com o tempo, ele parou de ler quadrinhos e migrou para sagas populares, como "Harry Potter" e "Percy Jackson". Depois de um hiato, sem ler muitas HQs, Mateuzzo voltou ao hábito há cerca de dois anos com a compra de "Batman: Silêncio". Hoje, já tem uma coleção de 40 exemplares, quase todos de super-heróis ou da série adulta “Vertigo”, da DC, que tem histórias mais breves como "Sandman".

"Um dia me despertou novamente a vontade de ler quadrinho e procurei no Google: ‘Como começar a ler quadrinhos’. É meio complicado por conta da cronologia e das ramificações; não é uma mídia tão acessível."

Para ele, a falta de organização e atrasos de lançamentos no Brasil é um dos problemas no mercado de quadrinhos. "O maior problema é o preço, que não acompanha a renda dos leitores. Com a crise econômica no Brasil, os valores dos quadrinhos só sobem. Pessoas que compravam todos os meses, gastando até R$ 200, hoje compram uma ou duas revistas", conta.

Para não depender inteiramente dos pais e sustentar seu hobbie, o estudante dá aulas. Pouco apegado aos gibis, ele indica a compra e venda das publicações como forma de manter a leitura ativa. "Revejo os que não gosto e compro um que seja mais valioso para a minha coleção."

O fotógrafo paulista Felipe Tesser, 34, concorda. Para ele, o fato de as histórias em quadrinhos terem diversas continuações e não serem fechadas em uma única revista acaba tornando o hábito uma "brincadeira cara". "Não é que os quadrinhos não sejam valorizados, até são. Mas as pessoas acabam não consumindo por conta do preço. E também pode ser por uma característica no Brasil: a maioria das pessoas não tem o hábito de ler."

Ele conta que começou a ler histórias da Mônica e do Seninha no início dos anos 1990, mas só voltou a comprar HQs há cerca de três meses. "Vi uma publicação do Homem-Aranha, meu personagem favorito em uma banca, e isso despertou de novo a vontade de ler. Dias depois, comprei outra", diz Tesser, que hoje tem uma coleção de cerca de 20 revistas em quadrinhos. "Isso me motivou a ler de novo, para matar a saudade do que eu fazia quando criança."

O fotógrafo não conseguiu trazer seus amigos para o hobbie, mas tem apresentado esse universo para sua noiva, Vanessa Felfele, 33. O progresso é perceptível: no ano passado, ela levou Tesser para a Comic Con Experience em São Paulo, que ele sonhava conhecer, e o pediu em casamento por meio de uma história em quadrinhos personalizada. O anel foi entregue por um cosplay de Homem-Aranha. "Foi bem engraçado porque ele até errou o casal", lembra.

É SÓ PARA CRIANÇAS?

Felipe Tesser e Gabriel Mateuzzo acreditam que o interesse pelos quadrinhos tem crescido, principalmente em decorrência dos lançamentos dos filmes. "Já há publicações de tudo quanto é tipo hoje”, defende Tesser. Mateuzzo completa: “Não dá para negar que o que aconteceu nos últimos dez anos teve impacto direto no mercado de quadrinhos. Acho que salvou o mercado, na verdade."

O impacto só não é maior por conta do preconceito. Para muitos, ler HQs é um hábito para crianças, e não para adultos. "Lembro de perguntar para um vendedor se ele vendia quadrinhos, e ele me responder que ‘não trabalhava com essas coisas de criança’. Mas, na realidade, quem mantém essa indústria são os adultos, que podem pagar", argumenta Mateuzzo.

O jovem questiona o fato de livros e desenhos serem considerados artes, mas os quadrinhos, que juntam as duas coisas, não serem vistos assim. Para ele, "dá a impressão de que você precisa de menos raciocínio para ler ele do que um livro, porque tem imagens". Mas o quadrinista, diz ele, vai além delas. Um exemplo bom é a HQ "Demolidor - A Queda De Murdock’".

"A narrativa gráfica é perfeita: nas primeiras páginas, mostra o personagem deitado na cama; na segunda narrativa, ele já perdeu a casa e está encolhido dentro de um hostel. Na terceira parte, que ele perdeu tudo, está em posição fetal em uma lata de lixo. Depois, ele dá a volta por cima e está deitado em forma de cruz, como se fosse o renascimento de Jesus", diz Mateuzzo.

Já o fotógrafo Tesser lembra que parou de comprar quadrinhos por volta dos 13 anos, época em que os adolescentes começam a se preocupar mais com o que estão falando sobre ele. Mesmo já tendo voltado a ler, depois de tantos anos, ele diz que o preconceito persiste. "Já fizeram piada por eu estar lendo, em vez de estar na piscina tomando cerveja."

"A imagem dos quadrinhos não deve ser mais reduzida às crianças", diz Ivan Costa, um dos sócios fundadores da CCXP São Paulo. "Já melhoramos muito [essa imagem] e os filmes contribuíram para isso –gostar de cultura pop não é mais algo estigmatizado. Hoje você vê camisetas de super-heróis na vitrine de grandes lojas –antigamente você só via na seção infantil. Temos até HQ dentro do prêmio Jabuti."

Freitas concorda ao lembrar que, quando pequena, os quadrinhos "não eram vistos com bons olhos". “Quem lia era o nerd do fundo da sala. Com 15 anos, o pessoal já zoava se você ‘lia desenho'." Hoje, ela lê principalmente HQs japonesas, mas sua coleção de quadrinhos americanos já beira 40 revistas. "O vendedor da banca já deixa as minhas revistas separadas", brinca. 

Mais do que isso, ela também vê mais mulheres no meio dos quadrinhos, que têm dado cada vez mais atenção a essa nova fatia de seus leitores. Quando criança, incomodava a ela o fato de as personagens femininas serem sexualizadas ou sem histórias exclusivas. "As histórias continham isso, mas quando tinham, eu não queria ler. Isso que me afastava", conta.

Mas, segundo ela, as histórias da Mulher-Maravilha e da Viúva Negra, de 2014 para cá, já mostram um novo perfil e forma de retratação. "A diferença é muito clara: não tem só peito e bunda. Não é para agradar o público masculino."

DIVERSIDADE

Em eventos como a CCXP São Paulo, o cenário também já é diferente. Ivan Costa, que é responsável desde a primeira CCXP pela parte dos quadrinhos, incluindo a curadoria para o Artists’ Alley  (espaço onde artistas podem expor e vender seus trabalhos de ilustração e HQs), comenta que a procura por integrar esses espaços têm aumentado ano a ano.

Da primeira edição até agora, o Artists Alley mais do que dobrou de tamanho: em 2018 havia 352 mesas e um total de 1.165 inscrições para disputar esse espaço. Frente a isso, Costa afirma que o Brasil tem uma produção crescente em quantidade e qualidade. "Hoje temos múltiplos gêneros: quadrinhos infantis, de terror, de super-heróis, eróticos etc."

Ele destaca que também cresceu a diversidade entre os participantes, como os transexuais, e principalmente entre as mulheres –no ano passado, elas corresponderam a cerca de um terço de inscrições e das bancadas no evento.

Para a edição da CCXP 2019, dentre grandes nomes internacionais como John Romita Jr., Frank Quitely, Lee Bermejo e André Dahmer, está confirmada a brasileira Ju Loyola, 40, que faz quadrinhos “não verbais”.

Loyola começou a desenhar quadrinhos aos dez anos, brincando com histórias como “Garfield” “Fido Dido” e “Ursinhos Carinhosos”, e a comercializá-los em 2015, aos 36 anos. Neste momento, ela já fazia histórias próprias como “The Witch Who Loved”, seu primeiro trabalho, e “Maria Lua & Cia - Aventura das Estrelas”, que estarão disponíveis em sua bancada da CCXP deste ano, em dezembro.

Para ela, quando o assunto é mulheres, o preconceito persiste inclusive entre os leitores –não à toa, diz ela, a maioria dos quadrinistas, cosplays e personagens ainda são homens. O mesmo acontece com os escritores nacionais: "É bom ver o crescimento do mercado, mas as pessoas ainda leem mais os quadrinhos internacionais e menos os nacionais. Deveriam investir mais nas histórias nacionais, porque tem gente muito talentosa e determinada no Brasil."

De fato, o Brasil tem talentos nacionais reconhecidos como Maurício de Souza, Ziraldo e Laerte, que, de certa forma, movimentam a economia do país. A Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB) estima que o mercado de quadrinhos mobilize 20 milhões de leitores por mês e o Brasil tem até um dia dedicado ao quadrinho brasileiro, comemorado em 30 de janeiro – nesta mesma data, em 1869, o desenhista Angelo Agostini publicou "As Aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte”, considerada a primeira HQ brasileira.

"Temos boas publicações independentes, mas que as pessoas não conhecem por falta de interesse ou pelos altos valores", avalia Tesser. 

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