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Estilo
Descrição de chapéu The New York Times

Como Jacinda Ardern usou a moda para fazer política sem que quase ninguém percebesse

Ex-premiê neozelandesa se tornou parte de vanguarda da nova geração de mulheres no poder

Jacinda Ardern durante visita a Washington, nos EUA - Chip Somodevilla-25.mai.2022/AFP
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Vanessa Friedman
The New York Times

Em setembro, Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia que recentemente deixou o posto depois de quase seis anos no cargo, fez algo que líderes governamentais raramente fazem: participou de um desfile de moda como modelo.

Vestindo uma reluzente capa de pescoço alto com uma estampa que parecia retratar vagens eletrificadas, sobre um vestido longo azul e pés descalços, ela percorreu a passarela no evento de abertura do World of Wearable Art, um concurso internacional de design realizado anualmente em Wellington, capital da Nova Zelândia, que foi retomado depois de dois anos de hiato causado pela pandemia. Ardern parecia uma espécie de sacerdotisa alienígena do Universo Cinematográfico Marvel, mas, ao mesmo tempo, era como se aquilo tudo não fosse assim tão importante.

Ardern pode ter sido conhecida por muitas coisas como líder, mas seu guarda-roupa dificilmente seria considerado como uma delas. Entre outros fatores, ela se notabilizou por conseguir que o seu país enfrentasse a Covid com sucesso; por sua competência ao lidar com um caso de homicídio em massa em duas mesquitas; por abraçar a "política da gentileza"; por se tornar, aos 37 anos, uma das primeiras-ministras mais jovens entre os líderes da Nova Zelândia; por ter um bebê durante o seu mandato; e, agora, por ser uma das raras chefes de governo a se afastar do posto por iniciativa própria.

No entanto, ao longo do seu mandato, Ardern também sempre compreendeu que a moda é um instrumento político —um instrumento que ela empunhava de maneira tão fácil e tão sutil, a serviço da sua agenda, que a maioria das pessoas nem sequer percebia o que estava acontecendo.

Ao fazê-lo, ela se tornou parte da vanguarda de uma nova geração de mulheres na política –entre as quais Sanna Marin, a primeira-ministra da Finlândia, com suas roupas de couro e jeans, e a deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, com seus brincos de argola e batom vermelho—, que escapou à uniformidade das líderes que as antecederam. Entre elas havia nomes como Angela Merkel, Kamala Harris (que no momento parece buscar refúgio em uma série de terninhos escuros) e até Margaret Thatcher, com os seus laços de fita no colarinho. Agora, as mulheres mais jovens estão desenvolvendo estilos próprios de liderança idiossincrática, estilos que tratam a questão da produção de imagem como uma oportunidade e não como uma obrigação.

Estilos que, nessa era visual, são parte tão importante de uma estratégia de comunicação como qualquer declaração oficial: elas sabem que uma "aparição pessoal" não significa simplesmente aparecer. E essa é uma mudança bastante significativa.

Afinal, por décadas as mulheres na política adotavam uma postura defensiva quando o assunto é o vestuário, vendo-o como uma bandeira de gênero frequentemente usada para pintá-las como superficiais e menos substantivas do que seus homólogos masculinos. A solução foi adotar —ou adaptar— o uniforme masculino. Declarar, caso alguma coisa lhes fosse perguntada, que elas "nunca pensavam em roupas". E, depois, vestir praticamente a mesma coisa dia sim, outro também.

Mas desde o início do seu mandato, em 2017, Ardern adotou uma abordagem diferente, uma abordagem que transformava o seu guarda-roupa em arma para servir aos seus fins, em vez de permitir que ele fosse usado contra ela. A primeira-ministra neozelandesa usou a moda como uma forma de ganhar acesso, não apenas como maneira de apoiar e divulgar a indústria local (embora isso seja algo que ela também fez), e sim como uma maneira de se conectar aos seus eleitores de maneira pessoal.

"Ela provou que as mulheres em posição de liderança podem ser acessíveis", disse Emilia Wickstead, uma estilista nascida na Nova Zelândia e radicada em em Londres, criadora do vestido que Ardern usou em sua visita a Boris Johnson, então primeiro-ministro britânico, numa viagem ao Reino Unido no ano passado. E Ardern o fez em parte por meio de suas roupas.

Ela usou quase exclusivamente peças de estilistas neozelandeses, desde a noite de sua primeira eleição, quando vestia um casaco cor de vinho e uma camisa combinada, da grife neozelandesa Maaike. E não se limitou a usar uma grife: foram muitas (uma breve lista inclui Juliette Hogan, Kate Sylvester, Ingrid Starnes, Karen Walker, Jessica McCormack e Wickstead). Ela usou peças desses estilistas quando foi fotografada para a edição americana da revista Vogue; quando Meghan Markle a escolheu para a capa da Vogue britânica da qual a duquesa de Sussex foi editora convidada; e quando posou para a capa da revista Time. Ardern usou um conjunto rosa brilhante de Juliette Hogan para sua entrevista no program The Late Show With Stephen Colbert.

E definiu "estilistas neozelandeses" da maneira mais ampla possível, usando uma tradicional capa de penas maori kahu huruhuru —um símbolo de poder e respeito— para o jantar da Commonwealth no Palácio de Buckingham em 2018, e vestindo uma estola de penas para o funeral da Rainha Elizabeth 2ª em setembro, criada sob medida pela estilista maori Kiri Nathan (ela também usou a capa de penas para o seu último discurso oficial ao país como primeira-ministra, feito para honrar o 150º aniversário do profeta Tahupotiki Wiremu Ratana, o líder espiritual maori).

A representação e o simbolismo, em dois eventos que a maior parte do mundo experimentou apenas por meio de fotografias, expõem claramente a posição de Ardern.

Mas o seu momento mais memorável talvez tenha sido usar um lenço de cabeça preto para demonstrar sua solidariedade aos muçulmanos depois que um atirador australiano assassinou 51 pessoas em duas mesquitas de Christchurch, em 2019, transformando um símbolo que frequentemente desperta controvérsia e preconceito no debate público em uma declaração de comunidade.

Quando Ardern decidiu reabrir as fronteiras de seu país para os australianos, em abril, com o enfraquecimento da pandemia, e foi ao aeroporto para receber os primeiros visitantes, ela disse a um telejornal que tinha usado deliberadamente um vestido verde, porque o verde e o dourado são as cores nacionais da Austrália. Ela riu ao dizê-lo, mas isso não faz com que o momento seja menos revelador.

Ou eficaz. De fato, se divertir com suas escolhas de roupas veio a se tornar uma das marcas registradas de Ardern. Ela disse à revista The New Yorker em 2018 que estava usando duas cintas elásticas quando foi entrevistada no The Late Show. Em 2020, postou uma imagem de um casaco cor-de-rosa no Instagram, com a legenda: "Por que é sempre nos momentos em que você não tem uma troca de roupas à mão que você percebe que está toda manchada de creme de fraldas?".

Depois de passar por um período de isolamento por conta da Covid, ela postou uma foto com a legenda: "Mas mesmo assim vou terminar a noite usando o mesmo ‘hoodie’ que estou vestindo há dias".

Para os estudiosos do poder que gostariam de aprender mais sobre como se relacionar com as pessoas, o que ela diz deveria ser leitura obrigatória.

Tradução de Paulo Migliacci

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