Estilo

Fashion Revolution: Como um acidente em Bangladesh transformou a moda no Brasil

Movimento incentiva marcas a se preocuparem com meio ambiente

Fernanda Simon, a idealizadora do movimento Fashion Revolution - Mathilde Missioneiro/Folhapress
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São Paulo

​Em 24 abril de 2013 aconteceu uma das maiores tragédias da indústria têxtil da história: o prédio Rana Plaza, em Bangladesh, local de produção de grandes marcas ocidentais, desabou deixando mais de mil trabalhadores mortos e cerca de 2.500 feridos. Apelidado de "fábrica de suor", o local usava mão de obra barata e tinha condições insalubres de trabalho.

No ano seguinte, nascia um movimento de moda consciente chamado "Fashion Revolution" (revolução fashion, em português), que instiga homens e mulheres a pensarem na indústria do estilo, desde o início de sua produção até o momento da compra. 

“Foi um dos piores desastres industriais de todos os tempos; esse acidente marcou a história da moda para sempre”, diz a paulista Fernanda Simon, 32, diretora executiva do Instituto Fashion Revolution Brasil. Através da ONG, ela promove workshops, debates e pesquisas, como os índices de transparência na moda.

Segundo ela, na época do acidente, profissionais da moda no Reino Unido decidiram se unir para criar o movimento global, liderado por Carry Somers e Orsola de Castro. Morando na Inglaterra e tocada pela causa, Simon acabou sendo indicada para ser representante do movimento no Brasil. Voltando ao seu país de origem, no mesmo ano, ela passou a encorajar marcas e consumidores a questionarem “quem fez as minhas roupas?”, pergunta que virou campanha e carro-chefe do Fashion Revolution.

Hoje, mais de 90 países já aderem à preocupação – e Simon afirma que o Brasil é o que promove o movimento com maior força. 

Há uma explicação por trás de tudo isso: segundo dados levantados pelo Instituto, a produção global de roupas mais do que dobrou desde os anos 2000. E, só no Brasil, estima-se que 170 mil toneladas de resíduos têxteis sejam produzidas por ano. Atrelada a isso, uma pesquisa da Global Slavery Index estimou 40,3 milhões de pessoas em situação de trabalho escravo em 2016.

“Todo mundo deveria estar em condições dignas de trabalho. Isso deveria ser o mínimo”, diz Simon. “Por isso, o Fashion Revolution propõe uma mudança sistêmica: desde a maneira como a moda é pensada, criada e produzida, até como é consumida e descartada”.

Por ser um movimento neutro, que não restringe marcas, o Fashion Revolution não tem selos para identificar produtores que o aderem, mas incentiva o questionamento individual. “Quem são essas pessoas por trás de nossas roupas? Em que condições trabalham? Onde vivem? Acreditamos que o primeiro passo para tratar de sustentabilidade e construir uma cadeia mais ética é através da transparência”.

Aderindo ao movimento, pequenas marcas de roupas estão, cada vez mais, mostrando quem são as costureiras por trás de suas peças por meio de fotos com os dizeres "eu fiz suas roupas". A ideia é mostrar que, às vezes, a peça pode custar um pouco mais, mas ter sido feita em uma cadeia de produção que respeita o trabalhador. 

Dentre dezenas de apoiadores – marcas como Malwee, Studio Trinca e Fala –, Simon cita Flavia Aranha, 35, que foi uma das primeiras a seguir o movimento de perto e aplicá-lo no mercado brasileiro, tornando-se integrante do conselho do Instituto Fashion Revolution.

Após uma viagem para a China em 2007, Aranha resolveu repensar o mundo da moda. “Entendi que tinham coisas muito erradas nessa cadeia. Vi coisas horríveis, como rios poluídos, crianças trabalhando, pé direito baixo, insalubridade etc. Fiquei muito chocada, aquilo mexeu muito com os meus valores e entendi de fato os reais custos da moda. Com tudo isso, como pode uma roupa custar um euro? Enquanto eu estava ganhando bônus e batendo metas, estava incentivando uma cadeia que era contrária ao que eu entendia como humano”, lembra.

Depois da experiência, Aranha pediu demissão de seu emprego e, antes de o movimento eclodir, criou em 2009 a marca de roupas que leva seu nome, com a qual procura recriar os vínculos da cadeira da moda, desde a agricultura até o consumo. 

 
 

Com uma loja no Brasil e duas em Lisboa, Aranha conta com a ajuda de 20 funcionárias contratadas sob regime CLT e outras seis freelancers. Além das piloteiras, conta com uma rede de empreendedoras que trabalham em casa e tem seus próprios ateliês. "Escolhemos isso por várias questões, mas especialmente pelas mulheres que precisam cuidar da casa, dos filhos e pelo deslocamento. Assim, incentivamos o empreendedorismo da mulher”.

Cida Miranda, 44, piloteira na empresa, conta que trabalhar na equipe de Aranha a fez mudar sua visão sobre a moda. Responsável pelo desenvolvimento das peças, a piauiense diz que enxerga “honestidade” no trabalho da marca, diferente das demais em que já trabalhou, que visam apenas o lado lucrativo.

“Nunca havia trabalho do jeito que a Flávia trabalha. Nós vemos o tecido cru, desenvolvemos toda a peça e acompanhamos a produção de perto”, diz. "Tento fugir da produção [em larga escala], porque estou na máquina desde os 15 anos de idade. Quando você encontra uma empresa que tem uma tranquilidade, como aqui, é ótimo. Quando cheguei e vi esse ambiente maravilhoso e de paz, decidi que queria vir para cá."

Ela já tinha o costume de costurar em casa, mas queria sair de lá e, neste momento, surgiu a proposta de Aranha. “Ela gosta de trabalhar bem aberta com os funcionários e gosto muito disso”, diz. Hoje, ela acha “o máximo” fazer parte da campanha do “Eu fiz suas roupas”.

“Trabalhar aqui com certeza faz bem para a minha autoestima. O trabalho é bastante ambiental, é tudo reciclável. A moda aqui é realmente sustentável, e tudo o que sai daqui vai para a reciclagem", diz. “Eu acho bem legal ter esse contato mais humanizado com clientes e a preocupação com o meio ambiente. Se todos fizessem isso, o planeta não estaria sujo como está aí fora. Eu já pensava assim antes, mas o trabalho foi uma forma de impulsionar isso.”

A boliviana Ana Aliaga, 42, que também é piloteira da marca, diz que é a primeira vez que trabalha pensando no meio ambiente. “Mudou muito a forma como eu encaro a vida; minha forma de reciclar, de comer mais comidas orgânicas, de reaproveitar… Temos que estar atentos ao nosso planeta, porque é o nosso lar. E nós, aqui, somos uma família”, conta.

Para além das condições de trabalho, Aranha pensa nos descartes de resíduos químicos utilizados na produção, como as tintas que tingem os tecidos. O trabalho de sustentabilidade começa na matéria-prima, que é praticamente toda orgânica, biodegradável e proveniente de agricultura familiar.

Um exemplo é o algodão orgânico, normalmente comprado da Índia, mas que também é produzido no Ceará e na Paraíba – e por isso, preferência da estilista. “Trabalhamos com esses dois polos, porque para nós é importante não só que o material cause um bom impacto no ambiente, mas que promova impactos positivos na sociedade. Assim, garantimos que espécies nativas sejam mantidas e incentivamos socialmente que as comunidades agrícolas permaneçam e se empoderem. Também sempre buscamos usar inovação tecnológica, para gerar contrapontos ao uso do petróleo”, conta, citando como exemplo o uso de palha e fibras de caroá e de buriti.

“Estamos desenvolvendo um tecido com látex, plástico, por exemplo. Partimos do princípio que a maior parte do processo deve ser feito no Brasil, mas temos alguns desafios – o linho, por exemplo, que não é feito aqui.”

A sustentabilidade também está presente na promoção de ideias da marca, como o aluguel de roupas – as consumidoras podem pagar um valor mensal para ter um acesso a certa quantidade de roupas, e depois devolvê-las, criando um ciclo sem desperdícios – e na educação dos clientes: “É nossa missão gerar engajamento. Temos um QR Code nas etiquetas que levam a um vídeo mostrando como aquela roupa foi feita. Também vendemos sabão biodegradável, para limpar a roupa com menos poluição”, diz Aranha.

Ela conta que sempre se preocupa em saber de onde vem e como são feitas as peças que adquire. “Mas eu tenho iPhone, então claro que há limites. Não consigo ser 100%. Mas não compro Fast Fashion e olho muito para o artesanato e marcas pequenas. Gosto de comprar de quem faz mesmo.”

A preocupação é relativamente difícil em um cenário onde predomina a produção de roupas em larga escala, acelerando o consumo e o descarte. A consequência são produtos com preços baixos, mas de qualidade inferior, e graves impactos ao meio ambiente e nas jornadas de trabalho. 

Ligia Rabinovitch, 54, que segue o Fashion Revolution comprando de marcas como a de Flavia Aranha, reforça a importância de se preocupar com a origem de suas compras – algo que, em sua visão, é mais forte no exterior.

“Sou uma usuária de moda sustentável porque não dá para estar no mundo de outra maneira”, conta a consumidora. "No mundo capitalista, eu mesma tento me impor algumas regras: me controlar ao máximo, consumir menos e com melhor qualidade e dar um destino àquilo que eu não uso mais, para garantir uma vida útil àquela peça. Se entra uma camiseta no meu armário, saem duas. Procuro praticar um guarda-roupa mais enxuto, promover trocas e doar. Mas é difícil: temos apelos na sociedade de consumo que são muito imediatos."

Ela diz que, para reverter as compras para a comunidade, procura comprar produtos mais artesanais, com mão de obra local. "Moramos num país tropical, mas que a população tem pouco acesso a tecidos naturais. Não faz sentido", questiona.

Para mudar essa realidade, ela concorda que é preciso tempo e dedicação. Otimista, Simon enxerga nas marcas um momento de maior interesse na sustentabilidade e entendimento da escassez dos recursos.

“O assunto ainda é novo no Brasil e existe um longo caminho a ser trilhado, porque a cadeia da moda é muito complexa. Ela polui e tem pessoas trabalhando em todas as etapas. O Fashion Revolution dá luz a essas questões, mas é só o início”, diz Simon. “O futuro terá que ser mais sustentável, então grandes marcas já estão querendo se aproximar deste caminho.”

O que falta, em sua opinião, é uma mobilização do consumidor – na maneira como as pessoas compram, se conectam com suas roupas e a descartam – e uma mudança na maneira como a moda é ensinada nas instituições e criada. Ela ainda defende o desenvolvimento de políticas públicas, melhores regulamentações e um olhar especial para as questões trabalhistas.

“É uma autoavaliação e uma mudança de pensamento. É como eu existo. Procure sempre por produtos de baixo impacto e que tragam algum propósito”, adverte.

 

​​UPCYCLING

 

Uma outra preocupação do Fashion Revolution é a recuperação de peças descartadas e a transformação delas em novos produtos, o que a uruguaia Agustina Comas, 38, aplica através da técnica do upcycling. Desde 2008, Comas produz peças femininas como vestidos e saias usando camisas masculinas "com defeito" e sobras da indústria têxtil como matéria-prima. 

"Após um tempo trabalhando no mercado, percebi como sobravam muitas roupas após as vendas. De 5% a 10% das roupas compradas por uma loja sobram, mesmo que em perfeitas condições, e são guardadas em caixões ou incineradas", conta Comas. "Então, junto a uma amiga, pensamos: e se fizéssemos roupas com essas roupas? E se recolocássemos esses produtos no ciclo?"

Na época, sem conhecer muito sobre sustentabilidade, Comas começou a vender no Uruguai e, após o acidente em Bangladesh, intensificou sua proposta. "Fomos nos unindo, começaram a chamar a gente e começamos a desenhar um nicho de pessoas do Fashion Revolution, que cresce a cada dia", conta.

Diferente de Aranha, que tem uma preocupação com as origens das peças, Comas foca em resolver o problema dos resíduos. No entanto, ela garante que as fábricas de onde compra sua matéria-prima são certificadas e respeitam as leis trabalhistas. "Nesse sentido, sei que estou "limpando" o resíduo de lugares idôneos. Mas não é orgânico, é o que o mercado padrão usa. Atacamos o problema por partes", diz.

No regime de trabalho de Comas, as quatro costureiras que são funcionárias trabalham em casa. "Elas estão com a gente desde o começo, e foram desenvolvendo junto conosco essa forma de fazer as roupas e seus acabamentos. Nossa produção é super artesanal e pequena, vamos trabalhando por projetos – no último Mercado Manual [festival de artesãos], por exemplo, desenvolvemos 50 peças. Não é uma lógica permanente, e sim algo mais lento".

Hoje, fora da loja, Comas não compra roupas. "Se os consumidores fossem como eu, o mercado estava lascado", brinca. "Minhas roupas são muito antigas, mas roubo um casaco do meu pai, uso peças-piloto da minha loja... Há muitos anos não compro roupas, mas se preciso comprar algo, como um presente, tomo muito cuidado com a origem. Dou 100% de prioridade às marcas que conheço, que sei de onde os produtos vieram e quem fez. Porque a compra é um voto: você apoia um negócio comprando."

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