Músicas contra Bolsonaro são boas, mas falta refrão que caia na boca do povo
Em quatro anos de governo, foram poucas as canções de protesto
"Hino ao Inominável" foi lançada neste sábado (17) no YouTube. Com melodia de Pedro Luís e Chico Brown e letra de Carlos Rennó, a música ganhou um clipe recheado de estrelas, num clima meio à la "We Are the World". Participam Wagner Moura, Marina Lima, Bruno Gagliasso, Zélia Duncan, Chico César, Arrigo Barnabé, Monica Salmaso, Lenine e dezenas de outros artistas.
Em apenas dois dias, o vídeo passou do meio milhão de visualizações. Uma façanha e tanto, ainda mais se levarmos em conta que a duração de 13 minutos e 44 segundos é umas cinco vezes mais longa que as dancinhas que viralizam no Tik Tok.
São 202 versos, que compilam algumas das frases mais ultrajantes ditas por Jair Bolsonaro (PL) ao longo de sua carreira política. Estão lá pérolas como a mulher que não merece ser estuprada por ser feia, o quilombola que pesa sete arrobas e não serve nem para procriar e o filho gay que o presidente preferia que morresse.
Ouvir "Hino ao Inominável" do começo ao fim é uma experiência épica. Uma catarse, mas também um mergulho no horror e no espanto: como que o Brasil elegeu uma figura abjeta dessas, já que muitas das barbaridades proferidas são anteriores ao pleito de 2018?
A canção é uma obra de arte, com interpretações inspiradas e um excelente arranjo de Xuxa Levy. Mas tem dois defeitos, digamos, enquanto peça de propaganda. O primeiro: falta um refrão pegajoso, para a galera bradar nos comícios. O segundo: chegou um pouco tarde demais, às vésperas do primeiro turno.
"Bolsominions", relançada agora como single de Chico César, também padece desses dois males. Artisticamente, é outro triunfo, com letra contundente e sonoridade sofisticada. Só que ninguém vai sair assobiando na rua.
"Que Tal um Samba?", a primeira canção inédita de Chico Buarque desde 2016, saiu no começo de julho. Não cita Bolsonaro nem indiretamente, mas o ouvinte sabe a quê o compositor se refere quando fala em "remediar o estrago". Apesar da pegada mais acessível que a das duas faixas citadas anteriormente, a música também tem uma letra elaborada, meio difícil de decorar.
Pelo menos a simplicidade está presente em "Micheque", lançada pelos Detonautas em 2021. O refrão pisa sem dó no calo da primeira-dama metida a santa: "Hey Michelle, conta aqui pra nós / A grana que entrou na sua conta é do Queiroz?". Um roquinho que até incomodou os bolsonaristas, mas não conseguiu se tornar um grande hit.
O melhor dos hinos ao inominável ainda é a marchinha "Bichos Escrotos 2", que Zeca Baleiro gravou para o Carnaval de 2020. O atual governo tinha apenas um ano, a pandemia nem havia começado, e a letra já começava com "o Brasil abriu a tampa do esgoto". Mas a presença de um sonoro palavrão talvez tenha impedido que essa obra-prima ganhasse maior divulgação.
É até de se estranhar que um presidente tão avesso à arte e à cultura tenha sido alvo de relativamente poucas canções de protesto. Verdade que muitos artistas populares ficaram com medo de se posicionar, para não alienarem parte de seus fãs. Ainda bem que, com as eleições se aproximando, até uma isentona como Ivete Sangalo deixou claro de que lado está.
O Brasil tem uma longa tradição de canções políticas, que ironizam o poderoso de plantão ou sonham com dias melhores. Em 1921, o presidente Artur Bernardes já era ridicularizado em "Seu Mé". A ditadura militar rendeu pelo menos dois clássicos absolutos da MPB: "Para Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, e "Vai Passar", de Chico Buarque.
Ambas tinham letras algo cifradas, algo desnecessário nos dias de hoje, em que supostamente não há mais censura. Por outro lado, há o risco crescente da violência, cometida por quem não tolera as diferenças políticas. Contra isto, a música pode ser uma arma eficaz, pois atinge a alma.
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