Uma das chaves para entender 'Black Is King' é a dedicatória de Beyoncé ao filho
Álbum visual da cantora fala primordialmente para as mães de meninos negros
Beyoncé tem três filhos. A mais velha, Blue Ivy, tem oito anos de idade. Os outros dois são um casal de gêmeos, Rumi e Sir Carter, que completaram três anos em julho. É para este último, o único menino entre os três, que Beyoncé dedica seu recém-lançado álbum visual “Black Is King”. Este detalhe é crucial para a compreensão da obra, mas foi ignorado em quase todas as críticas e réplicas que eu tenho lido por aí.
Dirigido pela própria cantora, "Black Is King" –na verdade, uma bem costurada sucessão de videoclipes para as faixas do álbum "The Gift", lançado em 2019– é de uma beleza sem par. "The Gift" é uma coletânea de canções "inspirada" pelo remake realista de "O Rei Leão", das quais só uma foi usada no filme da Disney, a balada gospel "Spirit". As demais dão uma rasante no pop africano contemporâneo. Beyoncé nem sequer participa de algumas faixas, cedendo os holofotes para nomes em ascensão como o nigeriano Burna Boy.
Musicalmente rico, o disco deu a deixa para uma interpretação visual ainda mais opulenta. Não é preciso saber o que é afrofuturismo ou catar as muitas referências a divindades africanas para se deslumbrar com os figurinos fabulosos ou as coreografias elaboradíssimas. Mas é claro que ajuda: "Black Is King" traz uma mensagem política poderosa e, quanto mais referências o espectador tiver, em mais camadas poderá penetrar. É, possivelmente, o artefato pop mais importante de 2020.
Mas qual é esta mensagem? Muito se tem discutido, no Brasil e no exterior. A própria Folha contribuiu para o debate: um artigo da historiadora Lília Moritz Schwarcz, publicado no dia 2 de agosto, gerou reações acaloradas.
Eu não sou negro e nunca fui alvo de preconceito racial. Tampouco sou um grande conhecedor da África e da cultura africana, como a própria Lília é. Mas consumo música pop desde os 13 anos. Também sou fã de Beyoncé, de quem tenho quase todos os discos. Por isto, me atrevo a dar o meu pitaco.
O roteiro de "Black Is King" é uma variante de "O Rei Leão", por sua vez um derivado de "Hamlet". Nas mãos de Beyoncé, a história se tornou a jornada de um garoto negro em busca de sua identidade. Veja bem: um garoto. A artista, que tantas vezes entoou hinos de empoderamento feminino, desta vez volta sua atenção para a masculinidade.
Quando alguém diz que Beyoncé falhou em produzir uma obra antirracista, é preciso lembrar que ela não está tentando convencer nenhum branco a não ser racista. O público-alvo primordial de “Black Is King” são mães negras como ela, que estão criando meninos.
A mulher negra é o mais baixo degrau hierárquico da sociedade ocidental. Ela apanha de todo mundo, inclusive dos homens negros. Beyoncé está propondo, simplesmente, que esta última relação de força seja revista. Que as mães negras criem seus filhos livres do machismo e cientes de sua ancestralidade.
Que sejam reis, no sentido de reinarem sobre si mesmos. Em nenhum momento Beyoncé faz uma defesa da monarquia como forma de governo ou romantiza a África pré-colonial, como já se disse por aí. Esta é uma leitura demasiadamente literal de um filme repleto de simbolismos e imagens oníricas.
“Black Is King” é, de certa forma, um conto de fadas. Pode soar ingênuo para os brancos, mas é um belo e profundo esforço de resgatar a autoestima de um povo vilipendiado, a quem foi negada sua própria história.
Quando um negro é expulso de um shopping só porque é negro, um branco mais atento assiste a um breve flash da intolerável pressão imposta pelo racismo estrutural, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ainda bem que os dois Matheus que peitaram o racismo nos últimos dias já são reis. Outros virão.
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