Tony Goes

Previsões para 2020, o ano em que a cultura será cancelada

Em sintonia com os novos tempos, minha bola de cristal agora é plana

Bárbara Colen, de lilás, em 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Bárbara Colen, de lilás, em 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - Divulgação
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Este é o nono ano consecutivo em que a minha coluna de Réveillon traz previsões jocosas para o showbiz brasileiro nos próximos 12 meses. Mas não existe país com showbiz que não tenha também uma cultura vibrante por trás. Será que o Brasil ainda terá cultura em 2020?

O primeiro meteoro cairá logo em fevereiro, com o cancelamento do carnaval carioca. Assustado com a quantidade de sambas-enredo com letras críticas ao governo, o prefeito Marcelo Crivella inventará uma rachadura em uma das arquibancadas do Sambódromo e interditará a Marquês de Sapucaí por questões de segurança. Os blocos e bailes também serão proibidos, por causa do risco de golden shower. Quem quiser, que pule em casa.

Em março, na iminência de deixar o cargo, o ministro da Educação Abraham Weintraub abolirá todas as regras gramaticais. Liberou geral na ortografia, na pontuação e na sintaxe. Agora cada um escreve como quiser! A medida cessará de imediato as críticas ao ministro, famoso por grafar “paralisação” e “insitar”. Tomaram, papudos? Ele não está mais errado!

Mas a alegre balbúrdia de Weintraub durará pouco. Ele será substituído por um megaultraliberal que privatizará todo o sistema educacional brasileiro, do maternal ao doutorado. Até a merenda escolar passará a ser cobrada dos alunos, e em dólar.

Nosso cinema também viverá uma nova era. Não haverá mais filmes que atentem contra a família, a religião e o patriarcado branco. Paulo Gustavo aposentará Dona Hermínia e estrelará “Meu Pai É uma Piça”, a cine biografia deste grande herói nacional, o coronel Brilhante Ustra.

No comando da Fundação Palmares, Sérgio Camargo conseguirá a abolição do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro. Em seu lugar, será instituída uma nova data comemorativa: 4 de outubro, aniversário de Francisco Félix de Sousa, um dos maiores traficantes de escravos da nossa história. Foi graças a empreendedores como ele que milhões de pessoas puderam deixar a África e se instalar no Brasil.

Só que o nome da nova efeméride – Dia da Gratidão Negra – gerará polêmica. Influenciadores de extrema-direita defenderão que ela deveria se chamar Dia da Gratidão Humana, porque, afinal, somos todos humanos.

No final do ano, a Netflix lançará o primeiro especial de Natal do grupo Porta da Frente –aquela pela qual entram as pessoas de bem e os humanos direitos; a dos fundos é para os serviçais e os bandidos. O programa mostrará um Jesus louro de olhos azuis, que faz "arminha" com a mão e mantém um apartamento funcional em Jerusalém, para comer gente. Não terá a menor graça, mas não era para ter mesmo. Quem ri da religião cristã (e só dela) merece morrer.

Por fim, soçobrada pela secura das verbas governamentais e pelo fim da Lei Rouboney (acabou a mamata!), a Rede Globo será vendida a um grupo empresarial capitaneado pelo Véio da Havan. Os carros-chefes de sua programação serão as lives do presidente da República, agora diárias, e a novela “Amor de Pai”, sobre um homem que, ao menor deslize cometido pelos filhos, diz que não tem nada a ver com isso. A emissora também mudará de nome: em sintonia com os novos tempos, passará a se chamar Rede Terraplana.

Será que tudo isto vai mesmo acontecer? Talvez morramos todos antes, vitimados por epidemias de gripe (as vacinas serão proibidas em maio). Mas, em algum lugar subterrâneo, a resistência já começa a se formar. A briga promete ser boa. Feliz 2020 para todo mundo.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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