O colorismo precisa ser combatido, mas não às custas de Fabiana Cozza
Criticada por ser branca demais, atriz renunciou ao papel de Ivone Lara
Fabiana Cozza parecia predestinada a encarnar Dona Ivone Lara no teatro. A atriz e cantora paulistana gravou várias composições da sambista carioca, morta em abril deste ano. Também se apresentaram juntas algumas vezes. Mais recentemente, Fabiana fez shows em homenagem a Dona Ivone.
Além da intimidade com a obra da compositora, Fabiana Cozza também tem uma certa semelhança física com Dona Ivone Lara. Além de um vozeirão, um requisito indispensável para atuar em um musical.
Tantos pontos em comum fizeram com que até a família de Dona Ivone recomendasse Fabiana para o papel principal do espetáculo que está sendo produzido no Rio de Janeiro sobre a vida da sambista. A escolha óbvia foi anunciada na última quarta (30). E aí, o mundo veio abaixo.
Militantes do movimento negro foram às redes sociais criticar a escalação de Fabiana Cozza para o papel de Dona Ivone Lara. Apesar de todo o talento e até do "physique du rôle", Fabiana deixaria a desejar em um quesito básico, segundo esses militantes: o tom da pele.
Filha de mãe branca e pai negro, Fabiana Cozza é, de fato, mais clara do que Dona Ivone Lara. Portanto, segundo os radicais que a atacaram na internet, ela estaria sendo favorecida pelo colorismo ao ser escolhida para o papel.
Colorismo é um termo criado na década de 1980 pela escritora americana Alice Walker ("A Cor Púrpura"). Apesar de ainda não ser muito difundido, o conceito descreve um fenômeno que todo mundo conhece: negros e pardos de pele mais clara costumam ter mais oportunidades e sofrer menos discriminação do que aqueles que têm pele mais escura.
Acontece que Fabiana Cozza não foi chamada para interpretar Dona Ivone Lara por causa do tom de sua pele. Ao enxergar colorismo onde ele não existe, a militância mais exaltada ignorou toda a trajetória de Fabiana Cozza (que, além do mais, sempre se considerou negra e sempre difundiu a cultura de origem africana), e reduziu-a a um tom na escala Pantone.
Fabiana abriu mão do papel de Dona Ivone e publicou uma carta aberta em suas redes sociais neste domingo (3), explicando as razões de sua renúncia. "Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos.", afirma em certo trecho do texto. "Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência."
Muita gente se solidarizou com a atriz e cantora, mas parte da militância que a assediou insiste que ela não teria "entendido" as críticas. Queriam o quê? Que Fabiana se imolasse em praça pública?
O colorismo causa danos terríveis e precisa ser combatido. Mas parte da militância negra exagera nesse combate, e acaba sendo injusta ao se voltar contra um de seus próprios membros.
Esse caso guarda semelhanças com os protestos que algumas transexuais fizeram contra o ator Luís Lobianco, que idealizou e atuou no espetáculo "Gisberta", sobre uma transexual brasileira que foi morta em Portugal. Por ser cisgênero, Lobianco não estaria "autorizado" a interpretar uma trans no teatro.
Todos esses militantes não sabem o que é teatro. Acham que uma peça precisa reproduzir em detalhes a vida real, e que um ator só pode interpretar a si mesmo. São de uma ignorância espantosa. E também são burros, com o perdão da má palavra. Porque esse tipo de atitude, ao atacar quem já é aliado, prejudica a luta de todos. A causa é justa, mas o alvo é errado. O inimigo é outro, e está dando risada de nos ver tão divididos.
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