Personagens negros devem sempre ser dublados por negros?
Os negros, como todas as minorias políticas, sofrem discriminações terríveis até hoje
Na minha coluna do dia 22 de fevereiro, comentei a reação racista que o filme "Pantera Negra" vem provocando em alguns setores da sociedade.
Nos Estados Unidos esse movimento é escancarado. Grupos de extrema-direita propuseram um boicote ao longa e tentaram derrubar sua avaliação crítica em sites especializados. Não deu certo: "Pantera Negra" já arrecadou mais de US$ 400 milhões nas bilheterias de lá, em menos de duas semanas.
Aqui no Brasil, onde o racismo é crime inafiançável, ele se manifesta de maneira sutil. Os detratores do filme focam na "irrealidade" da trama, ou na "absurda" nação imaginária de Wakanda (como se todo super-herói não fosse absurdo).
Se "Pantera Negra" desagradou parte da direita, na esquerda ele foi saudado como um símbolo do empoderamento dos negros. Mas o entusiasmo foi tão grande que muita gente se esqueceu de que o filme também é um produto da Marvel, uma subsidiária da Disney --uma megacorporação capitalista controlada por homens brancos de meia idade.
"Pantera Negra" não é, portanto, um bem cultural de origem 100% negra (aliás, absolutamente nada é de origem 100% pura). No entanto, o coletivo Mídia Ninja postou em seu perfil no Facebook uma montagem com os retratos dos dubladores do filme acompanhado pela seguinte legenda: "Desapontados mas não surpresos: dubladores de 'Pantera Negra' são todos brancos..."
Seguiu-se um debate nas redes sociais, com um lado propondo o boicote à versão dublada do filme e o outro alegando que essa problematização é insana. Estou com esse segundo lado. Do qual também faz parte o ator e dublador Guilherme Briggs, que publicou em suas redes sociais um texto que deveria ser definitivo.
"Na dublagem não escalamos por cor de pele e sim por voz e adequação da mesma ao ator e personagem, pelo talento e interpretação", escreveu Briggs. Ele segue citando vários atores negros brasileiros que dublam brancos, e vice-versa. E conclui: "Não existe racismo em dublagem".
O texto deveria ser definitivo. Não foi: o bate-boca virtual continua até agora, inflado por gente que não faz a menor ideia de como se dubla um filme. Até a atriz Carol Crespo --que é negra e dublou a personagem Shuri de "Pantera Negra", embora o Mídia Ninja não tenha percebido --deu sua opinião, defendendo um ponto de vista idêntico ao de Briggs: voz não tem cor.
Ela lembra, inclusive, que "Pantera Negra" foi criado por dois brancos, Stan Lee e Jack Kirby. Então, cobrar pureza racial dos envolvidos com o filme é mais do que ridículo: é divisivo, é contraproducente. Uma total perda de tempo.
Os negros, como todas as minorias políticas, sofrem discriminações terríveis até hoje, apesar dos avanços. Enfrentam problemas concretos, que requerem soluções urgentes. Só que a discriminação na dublagem não está entre eles.
Faltam dubladores negros? Faltam, assim como faltam engenheiros, médicos, advogados. Esse é um dado objetivo, que precisa mudar. A dublagem é uma arte e uma técnica, que exige talento e estudo. Cada vez mais negros estão trabalhando e se formando como dubladores. Cor da pele ou origem racial jamais foi critério de seleção.
De qualquer forma, um debate é sempre interessante, porque revela nossas virtudes e mazelas. E "Pantera Negra" mais uma vez demonstra sua força: não só como um bom filme de super-herói, mas como um acontecimento cultural capaz de fazer a sociedade discutir consigo mesma.
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