Golpe de 64 é rememorado por história de amor vivida na prisão
'Jessie & Colombo' resgata enredo de casal por meio de cartas trocadas entre eles ao longo de quase 10 anos atrás das grades
Neste 31 de março, completam-se 59 anos do golpe militar de 1964. E não é coincidência que uma nova série documental desembarque no Globoplay para lembrar o contexto daqueles dias. Com direção de Susanna Lira, "Jessie & Colombo" soma quatro episódios e retrata a repressão por meio da comovente história dos dois.
O enredo traz depoimentos de amigos e familiares, além dos próprios Jessie e Colombo, morto em 2021, com base nas cartas recebidas por ambos na prisão, principalmente aquelas trocadas entre os dois por quase dez anos, período em que permaneceram como prisioneiros políticos.
Toda a correspondência é narrada nas vozes de Humberto Carrão e Andréia Horta, enquanto os atores Gillian Villa e Jorge Hissa dão rosto aos personagens centrais em breves imagens recortadas para a abertura e passagens relatadas nas cartas.
Cabe aqui um parêntese para lembrar que o dramaturgo Gilberto Braga, quando escreveu a minissérie "Anos Rebeldes", em 1992, conseguiu emplacar um primeiro (e ainda raro) enredo ficcional na TV Globo sob o contexto dos anos de chumbo, mas tendo como protagonismo os conflitos do amor entre o casal Maria Lúcia (Malu Mader) e João Alfredo (Cássio Gabus).
Mesmo com um romance folhetinesco muito palatável para o gosto média da audiência da TV aberta, Braga teve cenas cortadas e reescritas para atender a determinações vindas diretamente de Roberto Marinho, por meio de um assessor do dono da Globo.
Hoje, o conhecimento do público e a democratização dos meios de informação, para o bem ou para o mal, cobram mais fidelidade à complexidade vivida por presos políticos na ditadura e por famílias que perderam parentes durante a repressão.
Mas se Susanna Lira não precisa mais fazer concessões como as que foram impostas a Gilberto Braga, contando uma história que faz o romance de "Anos Rebeldes" parecer mera água-com-açúcar, a cineasta sabe que é fundamental empacotar o assunto em uma embalagem atraente aos olhos do público, de modo a alcançar a plateia e furar as bolhas de quem já conhece muito sobre o período.
"Hoje em dia, com a competição que temos no streaming, se você não se empenhar na linguagem da história contada, você não alcança as pessoas. Não basta ter um bom tema, tem que ter uma linguagem que engaje até o último episódio", diz Susanna à coluna. Todo o grafismo usado na edição final, assim como a trilha sonora, de ritmo acelerado, conspira a favor dessa proposta.
O uso de atores em cena escapa com louvor daquelas dramatizações simplistas e serve apenas como recurso para ilustrar o teor das conversas registradas nas cartas.
A diretora teve especial cuidado ao retratar a tortura, vista por meio de pés que visivelmente se contorcem com a dor, e outros sinais sutis. "Todas as pessoas que foram torturadas são muito sensíveis a isso, acho que justiçamos essas pessoas de alguma forma quando lembramos que isso existiu, mas eu não quis glamurizar ou estetizar essa tortura", explica.
"Nos últimos anos houve a narrativa de que a ditadura foi branda, precisava mostrar isso. E ele [Colombo] viu Jessie sendo torturada na frente dele, não podia omitir isso, precisava mostrar. Tivemos muita parcimônia com as cenas."
Susanna conheceu a história dos dois durante a pesquisa para o filme "Torre das Donzelas", que retrata o presídio feminino de Tiradentes, em São Paulo, durante a ditadura militar. Como não esteve presa ali, Jessie ficou fora daquele longa-metragem. Mesmo assim, a diretora registrou à época o depoimento dela e de Colombo porque se encantou com a trajetória do casal.
A vontade de documentar o enredo era dele. Jessie, segundo a diretora, era avessa à publicização das dores vividas na prisão, mas foi persuadida pela certeza de que só um país que conhece seu passado poderá evitar os mesmos erros e crescer, como defende Susanna.
Os dois gravaram outra leva de depoimentos em 2021, quando Colombo já estava com saúde debilitada. Foram feitos registros individuais e também ao lado da filha, Leta, nascida na prisão.
O relato sobre a gravidez e o parto são dois pontos altos da produção, que traz um pedido de desculpas aos dois, ainda que verbal, em nome do Estado brasileiro, de Paulo Abrahão, ex-presidente da Comissão da Anistia.
"Não é a gente que está heroificando, o governo brasileiro reconhece que cometeu um erro", vê Susanna. "Para muita gente, o pedido de desculpas do Estado é mais importante do que qualquer indenização. Para mim, a coisa mais importante da série é esse pedido de desculpas."
É uma felicidade que a série seja lançada bem na semana em que se lembra o golpe de 1964, pensa a cineasta. "Esse tema não se esgotará enquanto a sociedade tiver esse pensamento que muita gente ainda tem hoje, que de alguma forma aquelas pessoas mereceram ser punidas. Infelizmente, corremos o risco de ter gente achando que aquilo tudo fazia parte da repressão e tudo bem. Não está tudo bem."
Susanna cita ainda o amadurecimento dos países vizinhos no tratamento dado às vítimas de ditaduras na Argentina, no Chile e no Uruguai, algo que faltou ao Brasil.
Embora ela tenha conhecido a história dos dois em 2012, a série começou a ganhar corpo de dois anos para cá e entrou em produção de fato em abril do ano passado. O Globoplay, conta, bancou o projeto ainda na era Bolsonaro, ex-presidente que celebra o 31 de março como "revolução" e não como golpe de Estado.
Pergunto se Susanna acredita que esta série estaria sendo lançada agora se o governo não tivesse mudado de comando. "Não querendo puxar sardinha, a série entrou no escopo do Globoplay sob outro governo, por uma equipe muito antenada com questões de sistemas existenciais, de modo que eles [Globoplay] fariam a série em qualquer período e escolheram essa série para contribuir para a reflexão sobre o que vinha acontecendo no governo."
É um tratamento bastante distinto daquele dado à obra de Gilberto Braga há 30 anos.
Comentários
Ver todos os comentários