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Sam Waterston Instagram/sam_waterston

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Alexis Soloski
Nova York
The New York Times

"Law & Order" estreou na rede de televisão NBC em 1990. Era uma série policial que na verdade acompanhava cada história de dois pontos de vista. Na primeira metade de cada episódio, o foco era a investigação de um crime. Na segunda, o processo judicial contra o acusado. Entre os membros originais da série estava Michael Moriarty, que interpretava um procurador assistente de justiça. Na temporada quatro, Moriarty deixou a série, sob circunstâncias controversas.

Segundo Dick Wolf, criador de "Law & Order", Warren Littlefield, então presidente da NBC, questionou se a série poderia continuar sem seu protagonista. Wolf acreditava que sim. "Tenho duas palavras para você", ele disse a Littlefield. As duas palavras? "Sam Waterston".

Waterston tinha acabado de encerrar sua participação em "I’ll Fly Away", um drama da NBC sobre direitos civis e não estava interessado em trabalhar em uma série policial. O retrospecto dele era como ator clássico, e Waterston nunca teve expectativas de trabalhar na televisão. Mas ainda assim ele aceitou o convite –inicialmente apenas por alguns episódios—, e assinou um contrato em 1994 para interpretar o incorruptível procurador assistente Jack McCoy por uma temporada.

"Eu não achava que ficaria lá por muito tempo", me disse Waterston recentemente. Naqueles anos, "Law & Order" se tornou uma referência cultural e uma franquia que deu origem a numerosos títulos (em uma época em que não era comum que séries policiais gerassem produções derivadas.) Mas Waterston –a cada ano mais grisalho, a cada ano mais enrugado– continuou a ser por muito tempo a cara do programa.

Quando a NBC cancelou a série, em 2010 –a audiência tinha caído a menos da metade do pico atingido na década anterior—, ele primeiro voltou ao teatro clássico e mais tarde aceitou papéis importantes na série "The Newsroom", criada por Aaron Sorkin para a HBO, e em "Gracie and Frankie", uma série de humor de Jane Fonda e Lily Tomlin para a Netflix. Fez alguns filmes. E então, em uma reviravolta que os roteiristas da série considerariam implausível mesmo em seus anos finais, o programa subitamente voltou ao ar depois de uma década de pausa, mais uma vez com McCoy e Waterston comandando o lado da Procuradoria.

O primeiro episódio do retorno estreou dia 24 de fevereiro nos Estados Unidos, na NBC (e estará disponível em streaming no dia seguinte nos serviços Peacock e Hulu; no Brasil, ainda não há previsão de estreia). E em 3 de março, o Hulu lançara "The Dropout", minissérie baseada no escândalo da Theranos, com Waterston no papel do ex-secretário de Estado George Shultz. A sétima e última temporada de "Gracie and Frankie" chega em abril, o que significa que Waterston terá três séries em cartaz simultaneamente, exibindo seu talento para o drama, a comédia leve e a interpretação de figuras reais.

"É um momento realmente doce para mim", ele disse, dando um gole cauteloso em uma terrina de canja de galinha. "Eu sempre quis provar que era capaz de fazer muitas coisas diferentes". Waterston me disse que seu lema é um verso do musical "A Chorus Line", sobre o desejo de um ator de tentar tudo: "Posso fazer isso! Posso fazer isso!" E agora, ele fez.

Nossa conversa aconteceu na tarde de um dia de semana recente. A previsão era de chuva –e a previsão acertou. Mas Waterston mesmo assim insistiu em que nos encontrássemos no Central Park; ele estava protegido do dia frio por um chapéu de abas largas, um casaco de couro e um guarda-chuva que manteve quase o tempo todo fechado. Ele me levou, e o fotógrafo que me acompanhava, ao Delacorte Theater, que abriga o festival Shakespeare in the Park e foi local de alguns de seus triunfos no começo da carreira do ator: Benedick em "Muito Barulho por Nada", o duque em "Medida por Medida", Hamlet em "Hamlet".

"O amor dele por aquele lugar era muito tangível", me disse Michael Greif, que dirigiu Waterston em "A Tempestade". E é verdade. Waterston caminhou pelo palco –com as bochechas vermelhas, os olhos reluzentes– como se o verão já tivesse chegado e ele estivesse vendo não uma mistura de chuva e neve, mas o trabalho que ele realizou nos últimos 60 anos.

"O Delacorte recebeu luz verde para uma reconstrução completa", ele disse em um restaurante italiano próximo onde tínhamos nos abrigado, trêmulos. "Isso é simplesmente ótimo".

Waterston –um sujeito franco, brincalhão e com um lado melancólico– nunca precisou de muita renovação, embora tenha se reinventado como ator mais de uma vez. A visita dele ao Delacorte parecia um esforço para encontrar a linha central de uma carreira frenética. "O que é bacana em envelhecer é que é possível contemplar o passado e perceber que na verdade valeu a pena ter feito tudo aquilo", ele disse.

Waterston começou cedo, interpretando um pequeno papel em uma peça dirigida por se pai, que era professor em uma escola preparatória no nordeste de Massachusetts. Em Yale, ele continuou a atuar; ainda se recorda de uma noite mágica em que interpretou Lucky em "Esperando Godot" e sentiu que ele e a audiência estavam "em uma incrível bolha de comunicação e compreensão mútua". (Isso aconteceu depois de o Yale Daily News comentar que ele era inteligente demais para o papel, recordou Waterston.)

Ele não era capaz de imaginar uma carreira no show business –"uma profissão para loucos", ele disse. Em Yale, estudou coisas mais sensatas, como francês e história. Fez um ano de curso na Universidade Sorbonne. Mas não conseguiu se fazer desistir do palco. "É uma diversão interminável", ele disse. "Comparado a outros tipos de trabalho, por que é que eu desejaria fazer outra coisa?"

Inicialmente, os papéis que apareciam eram principalmente cômicos, talvez por conta de sua figura alta e desengonçada e de sua cara de peregrino –rosto longo, nariz adunco, sobrancelhas soberbas. Ele lembra um pouco uma versão bonita de Abraham Lincoln. Waterston contesta a descrição "bonito".

Os papéis dramáticos começaram a chegar anos mais tarde. Depois vieram os filmes, e depois a televisão, na qual ele muitas vezes interpretava papéis baseados em pessoas reais. ("As pessoas sabiam que eu gostava de fazer Shakespeare. E um cara que gosta de fazer Shakespeare deve ser sério", ele disse.) Mesmo que se esforçasse para demonstrar seu alcance, algumas constantes permaneciam, como o interesse ávido por personagens que vivessem dilemas morais, pessoas com um lado teatral, mas também dotadas de gravidade natural.

"Apesar de todo o seu treinamento, ele tem uma incrível capacidade de ficar em silêncio na tela", disse Elizabeth Meriwether, showrunner de "The Dropout". "O espectador percebe que ele está pensando na tela e isso é realmente raro". E não importa qual seja o papel, ele sempre pareceu um homem em que se pode confiar. Stephen Colbert certa vez o apresentou como "o sujeito que parece mais confiável nos Estados Unidos".

"Law & Order" surgiu em um momento no qual ele estava começando a se preocupar sobre como bancaria os cursos universitários de seus quatro filhos. (Ele teve um filho, o ator James Waterston, com sua primeira mulher, Barbara Rutledge Johns, e três, as atrizes Katherine Waterston e Elisabeth Waterston e o cineasta Graham Waterston, com sua atual mulher, Lynn Louisa Woodruff.) O salário era decente e a série era gravada em Nova York, não muito longe da fazenda em que a família morava em Connecticut.

"Veio exatamente no momento certo", ele disse. "E me ajudou a evitar problemas. Me ajudou a não fazer coisas realmente estúpidas". Que coisas estúpidas, exatamente? "Bem, sei lá quais teriam sido as coisas estúpidas", ele disse. "Mas todo mundo sabe que coisas estúpidas é o que não falta".

É claro que "Law & Order" fez mais do que prevenir uma crise de meia-idade para o ator. Popular, influente e respeitosa para com a audiência, a série transformou muitos integrantes de seu elenco em astros. Até mesmo o efeito sonoro que a série empregava para denotar cortes de cena se tornou famoso.

Em pouco mais de dez anos, "Law & Order" tinha dado origem a diversos programas derivados, entre os quais "Law & Order: Special Victims Unit", que superou "Gunsmoke" e se tornou a série mais duradoura de todos os tempos na TV americana. (Se existe algo que os Estados Unidos amam mais do que crimes, parece que são crimes sexuais.) A série ajudou a estabelecer Nova York como polo de produção de séries de ficção, aproveitando a ampla disponibilidade de atores de teatro. Qualquer ator medianamente conhecido da cidade certamente tem pelo menos um episódio de "Law & Order" em seu currículo.

O formato de história dupla da série, que Waterston descreve como um mistério criminal seguido por um mistério moral, provou ser indestrutível. Todos os membros do elenco original deixaram a série, mas "Law & Order" continuou. (Mesmo depois do cancelamento, a série original continuou presente. Episódios foram reprisados por anos na TNT e as temporadas finais da série estão disponíveis no Peacock. No Brasil, ela está disponível no Amazon Prime Video) Mas ainda assim alguns personagens –o McCoy de Waterston, o Lennie Briscoe de Jerry Orbach (12 temporadas), a Anita Van Buren de S. Epatha Merkerson (17 temporadas) se tornaram marcos da série: pessoas trabalhadoras, incorruptíveis, determinadas a fazer justiça.

O formato sempre dependeu de estruturas e ritmos fixos. Nas primeiras temporadas, McCoy tinha cenas parecidas em cada episódio: interrogatórios, reuniões com o juiz, argumentos finais no tribunal. Isso poderia ter se tornado repetitivo, mas nas mãos de Waterston, a fórmula raramente pareceu genérica.

"Ele torna o seu papel e os diálogos infinitamente interessantes", afirmou Wolf em um email. "Isso requer um grau de talento e de humanismo que não muita gente possui".

Depois de 12 temporadas, o ritmo de trabalho parecia fatigante demais para Waterston, e em 2007 ele aceitou com alegria uma mudança para um papel menos sacrificado, o de procurador público, deixando as cenas de julgamento para atores mais jovens. Às vezes, em suas temporadas finais, Waterston se arrependia de não ter saído de vez da série. "Eu ficava imaginando se não tinha permanecido por tempo demais no baile", ele disse. E por fim a decisão de parar aconteceu para a série inteira e não só para ele.

Mas quando "Law & Order" voltou, ele aceitou participar do retorno –em parte como cortesia a Wolf, e em parte como uma espécie de comemoração final. "É agradável voltar e poder contemplar aquilo que fizemos", ele disse. Caminhar pelos sets reconstruídos, agora instalados em Long Island City, lhe pareceu um sonho, ele disse. (Mas, como na década de 1990, ele assinou um contrato de apenas um ano.)

Anthony Anderson, um veterano de temporadas passadas da série, também está de volta, mas os demais integrantes do elenco –entre os quais Hugh Dancy e Odelya Halevi como procuradores distritais assistentes– são todos novatos. Halevi cresceu assistindo a Waterston; ela gostava de fingir que era "a McCoy fêmea", escreveu a atriz em um email. Quando chegou ao set —empolgada, nervosa e esquecendo alguns diálogos—, Waterston a lembrou de que eles estavam lá para se divertir.

Para Waterston, boa parte dessa diversão vem do mistério moral descrito por Wolf, e da maneira pela qual o crime de cada episódio se conectava a uma questão social pertinente. "Já gravamos três episódios até agora", disse Waterston, terminando sua sopa. "E cada um deles é sobre algo que está dilacerando o país. Na atmosfera atual, acho que isso é bacana demais".

A atmosfera atual inclui uma perda de confiança nas instituições do governo, especialmente a polícia. Embora alguns espectadores possam querer debater o ponto, Waterston acredita que havia críticas à polícia incorporadas à série desde o começo.

"Se você estudar a maneira pela qual os policiais se comportavam no passado, havia muitas ocasiões em que a audiência era convidada a desaprovar sua forma de comportamento", disse o ator. "Agora isso está ainda mais presente".

A série trata dessa tensão em seu episódio de estreia. Na metade do episódio, o procurador distrital Jack McCoy aparece –com uma voz mais rouca, cabelos e sobrancelhas ainda mais grisalhos– para dizer a um colega mais jovem que "gostemos ou não disso, aquele grande e malvado departamento de polícia é nosso parceiro".

Depois de tantos anos, esse parece o tipo de cena que Waterston seria capaz de interpretar dormindo, ou quase. Mas ele não consegue trabalhar desse jeito. "Acho que deve existir quem consiga só colocar o velho terno e pronto, cena concluída", ele disse. "Mas acredito que faça bem para um ator –e de qualquer jeito essa é minha natureza– estar sempre no limite da incerteza".

Além disso, Waterston mudou nos dez anos passados desde o final da série –envelheceu, se tornou avô de novos netos–, o que significa que McCoy também teria mudado. Pense na situação como mais um dos mistérios, e talvez o mistério mais importante, na retomada de "Law & Order". Waterston já está trabalhando nisso.

"Se todas as questões sobre como interpretar Jack McCoy já estiverem resolvidas, definidas e acertadas", ele disse, "por que fazer o trabalho?"

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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