Sue Ann Pien, Albert Rutecki e Rick Glassman The New York Times

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Robert Ito
The New York Times

Em "As We See It", nova série da Amazon Prime, Violet, 25, que trabalha como caixa na rede de restaurantes Arby’s, quer desesperadamente arranjar um namorado, mas está procurando amor no lugar errado (ou seja, no Arby’s). As necessidades de Violet são simples: ela quer um cara bonitinho, e que goste de encontros divertidos. E, acima de tudo, ela quer uma pessoa normal.

Mas, para Violet, "normal" quer dizer algo mais do que um sujeito que use fio dental e não tenha fetiches repulsivos. Para ela, "normal" quer dizer caras que não sejam autistas.

Era um sentimento com o qual Sue Ann Pien, a atriz radicada em Los Angeles que interpreta Violet, era capaz de se identificar. Como Violet, Pien é autista. E sua escolha para o papel não aconteceu por acidente. O autismo foi um dos motivos para que ela fosse selecionada.

"Eu não seria capaz de interpretar esse papel se não fosse autista", ela disse. "Não teria sido capaz de oferecer as cores e a profundidade que extraio de minhas experiências."

Em um ramo no qual vem se tornando menos e menos aceitável que atores interpretem papéis distantes de suas identidades raciais, de gênero ou sexuais, as velhas normas quanto a personagens autistas persistem.

Em filmes recentes como "Tudo que Quero" (2017) e "Music" (2021), e em séries em cartaz na TV como "The Good Doctor", da rede de TV ABC, e "Atypical", da Netflix, papéis de autistas continuam a ser interpretados por atores não autistas.

Tudo isso faz com que uma série como "As We See It", uma comédia dramática sobre três jovens de 20 e poucos anos que dividem um apartamento em Los Angeles, seja ainda mais notável. A série, que estreou em 21 de janeiro, quebra um precedente na TV ao escalar para os papéis principais três atores que se identificam como autistas, e cujos personagens também estão no espectro do autismo.

Ter três personagens principais autistas permite que a série destaque uma diversidade de experiências e desafios relacionados à vida das pessoas autistas. Além de Violet, romântica e desinibida, temos Harrison (Albert Rutecki), que tem agorafobia e problemas de sobrealimentação causada por estresse, e Jack (Rick Glassman), um gênio dos computadores ranzinza que não tem qualquer filtro e prefere a companhia de aspiradores de pó robotizados à de seres humanos.

"Há uma citação excelente, que eu amo, e diz que caso você conheça uma pessoa com autismo, terá conhecido uma pessoa com autismo", disse Glassman. "Todo mundo tem suas deficiências e seus pontos fortes, e a série faz um trabalho realmente honesto na captura disso".

A diversidade de personagens ajuda quanto a um dos desafios centrais do programa: como criar personagens que têm dificuldades nas interações sociais mas que os telespectadores ainda assim considerem envolventes e desejem acompanhar por toda uma temporada –ou mais de uma? Para um espectador, um elenco com três Jacks seria difícil de aceitar (imagine "Big Bang Theory" com três Sheldons), mas a mistura dos três se torna terreno fértil para o desenvolvimento não só de conflitos mas de humor.

"Você fala da série e ela parece muito séria", disse o criador de "As We See It", Jason Katims ("Friday Night Lights", "About a Boy"). Mas, "se você assistir perceberá que não é nada disso". Ter três personagens principais bem diferentes também ajudou os roteiristas da série a resistir a uma velha convenção de Hollywood: a de retratar as pessoas autistas como idiotas prodígio.

"A realidade é que o savantismo ajuda a criar filmes e programas de TV empolgantes", disse Michelle Dean, professora de educação especial na Universidade Estadual da Califórnia - Channel Islands, que recentemente foi coautora de um estudo sobre pesquisas acadêmicas relacionadas à representação de personagens autistas no cinema e TV. "Mas o savantismo é representado de maneira muito excessiva em Hollywood e a realidade é que a maioria dos autistas não tem síndrome de ‘savant’".

Qualquer retrato do autismo nas telas necessariamente segue nas pegadas de "Rain Man" (1988), filme estrelado por Dustin Hoffman no papel de um idiota prodígio. Não foi o primeiro retrato do autismo nas telas, mas provavelmente teve o maior e mais duradouro impacto sobre a maneira pela qual os espectadores veem o autismo e sobre a maneira pela qual ele é retratado.

"Rain Man" conquistou os Oscars de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro e melhor ator, atraiu muita empatia e atenção quanto ao seu tema –e estabeleceu o padrão de escalar atores neurotípicos como Leonardo DiCaprio (Gilbert Grape – "Aprendiz de Sonhador", 1993), e Claire Danes ("Temple Grandin", 2010), para papéis neurodiversos.

As experiências pessoais e profissionais de Katims o posicionaram para contrariar a tendência em 2018, quando ele primeiro começou a trabalhar com a ideia da série. Ele tinha criado um personagem que tem síndrome de Asperger para "Parenthood" (2010-15), série da NBC, inspirado em parte por seu filho adolescente. Mas o filho dele tinha crescido, desde então, e a vida caseira da família estava evoluindo.

"Tenho um filho que está no espectro do autismo e tinha 20 e poucos anos na época, e comecei a pensar sobre como seria o futuro dele", disse Katims. "Comecei a perceber que muito do que eu tinha lido e visto sobre o autismo envolvia crianças autistas, o que inclui meu trabalho em ‘Parenthood’. Escrevi 100 episódios sobre um menino que tem autismo".

O agente dele tinha lhe falado sobre "On the Spectrum", uma série de humor israelense sobre três jovens autistas de 20 e poucos anos que dividiam um apartamento em Tel Aviv. Katims decidiu que realizaria uma adaptação americana da história. Mas diferentemente da série original, ele queria atores autistas para interpretar o trio, ainda que não estivesse seguro de que isso seria possível.

"Eu honestamente não fazia ideia sobre o pool de atores autistas que temos disponível", ele disse. Quatro dias depois que ele começou sua busca, a diretora de elenco Cami Patton ("The Americans", "Goliath"), apareceu com um vídeo que Pien mandou como teste para a série, lendo uma cena curta mas crucial do episódio piloto.

"Bastou ver 30 segundos da audição dela e comecei a chorar", disse Katims. Rutecki, que mora em Minersville, Pensilvânia, uma pequena comunidade cerca de 160 quilômetros a noroeste de Filadélfia, foi informado sobre a série por um primo que está fazendo pós-graduação e, em uma visita de estudo a Los Angeles, ouviu falar de uma nova série que estava em busca de atores autistas.

Rutecki nunca tinha trabalhado em televisão, mas fez um teste para o papel e os produtores gostaram daquilo que viram. "Assistir ao nível de atuação dele melhorar durante a série foi uma coisa linda de se ver", disse Katims.

As gravações de "As We See It" começaram em 2019. Além dos três atores principais, o elenco inclui Sosie Bacon ("Mare of Eastdown"), como assistente comportamental e, na prática, mãe postiça dos três personagens; Joe Mantegna ("House of Games", "Criminal Minds"), como o pai de Jack, que está morrendo de câncer; e Chris Pang ("Podres de Ricos"), como o irmão superprotetor de Violet.

A produção também envolve assistentes neurodiversos, no set e na equipe de roteiristas, e atores coadjuvantes autistas, como Tal Anderson e Naomi Rubin, de "Atypical".

"Todos os personagens que são neurodiversos foram escalados autenticamente", disse Katims. "E há dois atores neurodiversos interpretando personagens neurotípicos na série".

Elaine Hall, fundadora do Miracle Project, um programa de teatro e cinema para crianças autistas, foi contratada para ajudar a garantir que o set fosse um ambiente acolhedor e não deflagrasse crises. A série controlou ao máximo possível os sons mais altos. Glassman aprecia a ajuda.

"Meu podcast se chama ‘Tire os Sapatos’, e é uma metáfora para todas as regras que tenho, e que podem levar os outros a me verem como uma pessoa difícil", ele disse. "Mas Elaine chegou e tentou fazer com que eu me sentisse seguro e confortável, e Jason orientou todo aquele grupo de pessoas para que elas fossem mais sensíveis com relação a nós. Isso foi realmente bonito, mas também questionei por que as coisas não são assim em todos os sets".

Pien concorda. "Usualmente, preciso atuar por mais tempo do que minhas cenas pedem. Tenho que fingir que sou uma pessoa normal. Preciso ficar atenta aos meus maneirismos. Preciso manter uma determinada expressão em meu rosto. Estar em um set em que eu não precisava esconder meu autismo com certeza era um paraíso".

Dada a presença de três atores autistas interpretando personagens autistas, era inevitável que em alguns momentos as linhas entre a vida real e o ambiente fictício da série se emaranhassem. Havia cenas em que Violet, a personagem de Pien, estava tendo uma crise, e Rutecki sentia vontade de abandonar o personagem para confortá-la, disse Pien.

Em outra ocasião, em um intervalo entre tomadas, Rutecki tampou os ouvidos com as mãos para isolar o barulho do set; Pien imitou o gesto dele, em solidariedade. "Tive muitas experiências maravilhosas no set", disse Rutecki.

"Meu pai faz barulho ao mastigar, e isso me deixa louco", ele disse. "E por isso pedi ao diretor que colocasse alguém mastigando ruidosamente do meu lado, porque eu precisava estar frenético na cena seguinte, e eu sabia que ouvir aquele cara mastigando me deixaria louco".

Katims inicialmente se preocupou com os desafios que a presença no set de tantas pessoas que estão no espectro do autismo poderia criar. Será que a produção teria, por exemplo, de seguir horários diferentes ou criar muitos protocolos novos? "Não fizemos isso", ele disse.

"E os três atores principais chegaram bem preparados. Há muitos outros atores com que trabalhei em outras séries e não sei se eles se preparam tanto".

Katims já começou a pensar em histórias para uma segunda temporada, que ele espera que venha a ser produzida, e o elenco gostaria que seu desempenho abrisse portas para outros atores neurodiversos em filmes e séries.

"Não quero subir no palanque e dizer que apenas atores autistas deveriam interpretar personagens autistas", disse Glassman. "Mas acho que o pêndulo precisa se mexer um pouco, e séries de TV como essa iluminam a ideia de que, olha só, eles são capazes de fazer esse trabalho".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci. 

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