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Gloria Calderón Kellett diz que mostrar alegria de latinos é revolucionário

Roteirista lança minissérie 'With Love', que chega ao Brasil em fevereiro

Gloria Calderón Kellet Instagram/gloriakellett

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Alexis Soloski
The New York Times

Na infância e adolescência, em Portland, Oregon, na década de 1980, Gloria Calderón Kellett, 46, assistia televisão o tempo todo: "Vivendo e Aprendendo", "Fama", "O Barco do Amor", "Caras e Caretas", "A Different World", "The Cosby Show" ("este último ficou complicado, agora", ela disse.) Mas raramente via personagens parecidos com ela, nascida nos Estados Unidos mas filha de imigrantes cubanos. E isso não a incomodava.

Mas ela ainda se lembra da empolgação que sentiu quando um personagem com um sobrenome parecido com o seu, Esteban Calderone, apareceu em "Miami Vice". E se lembra de ter ficado confusa: Calderone era um traficante de drogas, um vilão.

Mais tarde, quando ela começou a trabalhar como atriz, descobriu estereótipos semelhantes. (Também descobriu que os diretores de elenco lhe diziam que a pele dela era clara demais para papéis de latina, e que seu corpo tinha curvas demais –mesmo que ela pesasse menos de 45 kg– para qualquer outro papel.)

"Era sempre uma narrativa de trauma, uma mãe gritando, uma mãe chorando –nada que refletisse como minha vida realmente era", ela disse. "Minha vida sempre esteve cheia de alegria".

Essa afirmação veio em uma conversa por vídeo recente. Calderón Kellett agora, além de atriz, é criadora, produtora e roteirista de séries, e estava falando de seu escritório caseiro ensolarado, do qual construiu uma carreira criando histórias sobre personagens hispânicos cujo principal traço é a alegria —especialmente como showrunner da versão repaginada de "One Day at a Time", adorada pela crítica.

No último dia 17, estreou nos Estados Unidos a primeira minissérie que ela criou sozinha, "With Love", uma comédia romântica multigeracional em cinco episódios cujas histórias se passam cada qual em torno de um feriado diferente —no Brasil, a atração estreará em 11 de fevereiro no Amazon Prime Video.

"Foi uma alegria escrever a série, e ainda mais alegria produzi-la", disse Calderón Kellett, se aproximando da câmera. "Minha esperança é que esse sentimento de alegria e gentileza, de prosperidade e sabor, faça as pessoas sentirem que ‘esse é o abraço caloroso de que preciso agora’".

Falar com Calderón Kellett é como receber aquele abraço remotamente, quer você queira, quer não. Mesmo em uma tela –ou talvez, dada a natureza de seu trabalho, especialmente em uma tela–, ela tem uma energia acolhedora e inspira qualquer um a querer sair e vender um caixote inteiro de biscoitos natalinos e se tornar uma pessoa pelo menos ligeiramente melhor. O entusiasmo dela poderia passar por ingênuo se não viesse acompanhado por uma inteligência astuta, décadas de trabalho árduo e provas amplas de competência.

"Ela está no mercado há muito tempo, sempre trabalhando com firmeza", disse Tanya Saracho, amiga de Calderón Kellett e, como ela, produtora de séries. "Por isso, quando conseguiu seu grande contato, a sensação foi a de que ela merecia, e de que uma mulher não branca também podia ocupar espaços daquela maneira".

Depois de estudar teatro e comunicações na Universidade Loyola Marymount, em Los Angeles, Calderón Kellett se mudou para Londres para fazer mestrado em teatro no Goldsmiths College. De volta à Califórnia, ela se viu trabalhando como assistente do diretor e roteirista Cameron Crowe, atendendo telefonemas e assinando pela recepção de pacotes da UPS.

Ele a encorajou a escrever algumas amostras de roteiros televisivos. Uma comédia com atores é como uma peça de teatro, ele disse. Os roteiros, e mais uma noite de monólogos que ela produziu por conta própria, conduziram a um primeiro trabalho como roteirista em "The Ortegas", uma sitcom cancelada ainda antes da estreia.

E novos trabalhos como roteirista se seguiram –"How I Met Your Mother", "Rules of Engagement", "Devious Maids", "iZombie". Em alguns desses trabalhos, ela encontrou sexismo. Em outros, racismo. (Calderón Kellett se lembra de ela e outra roteirista latina terem sido apelidadas de "Spic"[um termo derrogatório para latinos] e "Span".) Mas ela não deixou que isso a afetasse. "Não me incomodou", ela disse. "Para mim, era só ridículo".

Depois de uma década no ramo, ela se sentia preparada para contar histórias mais próximas da sua. "Eu era séria e audaciosa o suficiente para fazer o trabalho", disse Calderón Kellett. Foi então que ela marcou uma reunião com Norman Lear, um aclamado criador de sitcoms e especialista em inserir críticas sociais mordazes em comédias amistosas de meia hora de duração. Lear e Mike Royce queriam criar uma nova versão de "One Day at a Time", uma sitcom sobre uma mãe solteira que ficou em cartaz de 1975 a 1984.

Na reunião, ela propôs uma versão na qual a família central seria de americanos de origem cubana. Mas também expressou dúvidas. "Há um trauma causado pela profunda falta de representação de minha comunidade", ela se lembra de ter dito a Lear. "E quando temos uma coisa que seja, não há como evitar a tentação de buscar compensar 200 anos de atraso". Ela disse que a série só funcionaria se tornasse a família incrivelmente específica. Isso convenceu Lear a contratá-la como um dos showrunners da série, com Royce.

"Bastou um segundo para sabermos que ela era a pessoa certa", escreveu Lear em um email. "Quatro temporadas mais tarde, nenhum de nós tinha motivo para se arrepender da decisão".

Justina Machado, a estrela do show, atriz nascida nos Estados Unidos e descendente de porto-riquenhos, aprecia a autenticidade da série. "Ela nos dá uma maneira de contar a nossa história do nosso jeito –sem precisarmos ter nossas histórias embranquecidas, sem precisarmos torná-las mais palatáveis", disse.

Mas a despeito das críticas muito positivas, "One Day at a Time" teve de batalhar por cada uma de suas quatro temporadas, e se transferiu da Netflix para a Pop TV, terminando antes do momento que seus criadores consideravam ideal —no Brasil, as três primeiras temporadas estão disponíveis na Netflix. Isso acontece com muitas séries centradas em personagens hispânicos. "Vida", de Saracho, "The Baker and the Beauty", "Broke", "Grand Hotel".

"Se você realmente tem o compromisso de elevar as comunidades não brancas, é preciso poder dizer que ‘temos uma série com 100% no Rotten Tomatoes’", disse Calderón Kellett, se referindo ao placar da série entre os críticos. "Ou seja, talvez devêssemos gastar um pouquinho mais de dinheiro na divulgação". Foi um dos poucos momentos da entrevista em que ela falou com mais firmeza que alegria.

"One Day at a Time" foi cancelada cerca de um ano atrás, no meio da pandemia, quando ela e o marido, o cartunista Dave Kellett, estavam se sentindo isolados de suas famílias. Calderón Kellett se mantém ativa na mídia social, e tipicamente se diverte com as interações que encontra. (Ela frequentemente abre sua conta do Twitter para que roteiristas, atores e diretores jovens possam fazer perguntas à "Tia Glo" diretamente.) Mas no ano passado, ela diz que sempre que se conectava encontrava uma "barragem de corpos negros, latinos, queer e asiáticos em trauma".

Por isso ela concebeu "With Love" como uma resposta otimista. Se ela e o marido não podiam ver suas famílias nas festas, ela estruturaria cada episódio em torno de um feriado. Se personagens queer e não brancos costumam ter papéis menores nas comédias românticas e filmes natalinos –quando aparece—, ela lhes daria posição central em seu novo projeto, e uma cozinha Nancy Meyers​.

Ela propôs a série em janeiro de 2021, montou uma equipe de roteiristas em fevereiro, rodou os episódios em junho. Passada em Portland, a história acompanha a família Diaz, um clã interdependente e multigeracional que opera um restaurante de culinária mexicana fina. Começando na noite anterior ao Natal, a história passa pela véspera do Ano-Novo, pelo Dia dos Namorados, pelo feriado do Dia da Independência americana (4 de julho) e pelo Dia dos Mortos. Calderón Kellett faz uma ponta como tia Gladys, uma solteira perpétua que faz parte de dois clubes de leitura e um clube de vinho. (Os clubes de leitura na verdade também são clubes de vinho.)

Os relacionamentos podem parecer fantasiosos –os membros mais velhos da família Diaz aceitam a todos como cada um é, e sempre demonstram amor. Imagino se isso acontece por compensação excessiva, como uma maneira de contrabalançar todos aqueles traficantes de drogas e mães chorosas. Na verdade, não, me disse Calderón Kellett.

"Famílias são assim; minha família é assim", ela disse. (Diversos de seus colegas confirmam o fato. Que seus pais agora vivam do outro lado da rua em uma casa que ela ajudou a comprar também serve como corroboração.)

Para Emeraude Toubia, atriz de origem mexicana e libanesa que interpreta Lily, a filha dos Diaz, as histórias de Calderón Kellett não parecem excessivamente romantizadas. "Sim, são idealizadas", ela disse em uma entrevista por telefone. "Mas, em última análise, é isso que somos". Se a série modela compreensão e gentileza, o que há de errado nisso?

Para os fãs dedicados de comédias românticas e filmes natalinos, muitas das convenções de "With Love" parecem familiares. Mas isso também é deliberado. Steven Canales, outro grande amigo de Calderón Kellett e criador de "Pose", me disse que a admirava por colocar personagens hispânicos em gêneros de história para os quais eles não são convidados com frequência.

"O motivo para que Gloria mereça mais crédito é colocar as pessoas latinas em espaços aos quais historicamente não temos acesso", ele disse.

É assim que ela encara "With Love": como uma forma de escapismo responsável e de levar a cultura a um avanço. Mudança positiva, embrulhada no papel de presente mais reluzente que ela possa encontrar. "A alegria é revolucionária. Mostrar pessoas latinas, negras, queer e asiáticas experimentando alegrias e prosperando é parte dessa revolução", ela disse. "Estou aqui para isso".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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