Cenas da série "O Livro de Boba Fett" Divulgação

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The New York Times

Para muitos espectadores, "Star Wars" é sinônimo de personagens como Luke Skywalker e Darth Vader, personificações do heroísmo ou da vilania cujas ações determinam o curso dessa duradoura série de histórias de fantasia.

Mas há os fãs de "Star Wars" cuja admiração é um pouco mais profunda, e se estende às fileiras de personagens coadjuvantes cujas intenções são mais difíceis de categorizar e cuja presença nas telas pode ser medida em minutos.

Um exemplo é Boba Fett, o mercenário de armadura apresentado aos espectadores em "O Império Contra-Ataca", de 1980, a primeira continuação do "Guerra nas Estrelas" original. No filme, ele só aparece em algumas cenas, como cúmplice na trama de Vader para atrair Skywalker a um duelo fatídico.

Fett reaparece em "O Retorno de Jedi" (1983), no qual ele encontra um fim rápido e doloroso. (Ou assim parece.) De qualquer forma, Fett desfruta de um lugar único na psique coletiva dos devotos de "Star Wars", que passaram anos imaginando o que mais ele poderia ter feito e construindo uma iconografia em torno de seu rosto sempre mascarado.

Agora, depois de décadas de livros, jogos, brinquedos e outras mercadorias que ajudaram a manter vivo o culto a Boba Fett, ele se tornou o protagonista de uma história própria na saga "Star Wars". "O Livro de Boba Fett", uma série de sete episódios que estreou dia 29 de dezembro no serviço de streaming Disney+, traça um novo rumo para o personagem, depois dos acontecimentos de "O Retorno de Jedi".

Para as pessoas que fazem "Star Wars" e para as pessoas que consomem os produtos, a culminação da jornada cultural de Fett, de jogador periférico a figura significativa na franquia, é tanto uma validação quanto uma surpresa, em alguma medida.

Para muita gente, a ascensão de Fett ilustra de que maneira "Star Wars" evoluiu ao longo de sua história, estendendo seu alcance e dando a mais personagens um momento de brilho –ainda que os atrativos específicos de Fett pareçam estar envoltos em mistério, e que sua identidade seja definida primariamente pela reticência e por ações indicadas, mas jamais mostradas.

"As coisas que Boba Fett fez nos filmes não são assim tão importantes, mas as coisas que Boba Fett fez são", disse Charlie Soule, autor da série mais recente de quadrinhos de "Star Wars". "Todo mundo que encontra Boba Fett se sente intimidado por ele ou interessado nele, ou deseja usá-lo para realizar os trabalhos mais difíceis", explicou Soule. "Ele tem um lugar incrivelmente vívido na galáxia de ‘Star Wars’, para além de suas aparições nas telas".

Boba Fett deve seu surgimento em parte ao acaso e a mudanças de percurso. Depois do sucesso imenso de "Guerra nas Estrelas", em 1977, o roteirista e diretor do filme, George Lucas, começou a preparar uma continuação. Entre os personagens que ele concebeu estava uma nova categoria de "stormtrooper", os soldados empregados pelo malévolo Império.

Joe Johnston, futuro cineasta mas na época diretor de arte de "O Império Contra-Ataca", trabalhou com o artista conceitual Ralph McQuarrie para desenhar os uniformes desses soldados de elite, criando uma armadura e um capacete com uma fenda estreita para visão.

Johnston, que mais tarde dirigiria filmes como "Jumanji" e "Capitão América: O Primeiro Vingador", disse que Lucas reduziu a escala de seus planos devido a preocupações com custos. "George disse que não teríamos como bancar um exército daqueles soldados, mas já tínhamos a nova armadura pronta", recordou Johnston. "Ele propôs transformar o personagem em um caçador de recompensas. A ideia pareceu boa".

Por instrução de Lucas, Johnston ajustou o novo personagem, se inspirando no desconhecido sem nome interpretado por Clint Eastwood nos westerns espaguete de Sergio Leone. A armadura do caçador de recompensas parecia desbotada e trazia marcas e riscos, indicando seu passado de conflitos.

(Por algum tempo, a ideia era de que ele também usaria um poncho, mas na prática o traje bloqueava o acesso às armas.) Assim nasceu Boba Fett. "Ele não era nem herói e nem vilão", disse Johnston. "Boba Fett podia ser contratado para fazer qualquer trabalho de que você precisasse".

De acordo com Peter Vilmur, diretor de relacionamento com os fãs da Lucasfilm, Boba Fett fez sua estreia pública em setembro de 1978, em um desfile no condado de San Anselmo, Califórnia, mas os espectadores só prestaram atenção em Darth Vader.

Fett também apareceu, como personagem de animação, alguns meses mais tarde, no notório "Star Wars Holiday Special", um programa de TV muito mal recebido que nunca foi reprisado. Uma promoção dirigida a colecionadores de brinquedos "Star Wars" permitiu que eles comprassem um boneco de Boba Fett antes que ele aparecesse nos filmes. Nada foi revelado sobre a vida ou a história do personagem.

"Para as pessoas que não cresceram naquela época, é difícil compreender a fome que tínhamos por informações sobre ‘Star Wars’", disse John Favreau, criador de "O Livro de Boba Fett" e da série da Disney+ da qual o programa foi derivado, "The Mandalorian".

"Comprávamos revistas com fotos dos personagens", ele disse. "Comprávamos brinquedos e brincávamos com eles. Quando Boba Fett apareceu na tela, a sensação era a de que já o conhecíamos". Ele foi visto por alguns momentos em "O Império Contra-Ataca", como parte de um grupo de caçadores de recompensas que Vader instrui a procurar o renegado Han Solo. Vader chama Fett para uma conversa breve: "Nada de desintegração". (Fett resmunga em resposta: "Como o senhor preferir".)

A interação bastou para despertar a imaginação de muitos espectadores de "Star Wars". "Quem era aquele cara que Darth Vader, o mais vilão dos vilões, tinha chamado para conversar? O que ele tinha de tão especial?", diz Soule.

Em "O Retorno de Jedi", Solo, temporariamente cego, ativa sem querer o motor a jato da mochila de Fett, arremessando-o contra o casco de uma nave e depois rumo à goela de um monstro Sarlacc que estava à espreita. Mas nem mesmo a aparente morte do personagem conseguiu reduzir o entusiasmo dos fãs quanto a ele.

Sem novos filmes de "Star Wars" no horizonte, os admiradores de Fett continuaram a especular sobre a identidade do homem jamais visto por sob aquela armadura ameaçadora. "No caso de Boba Fett, menos é mais", disse Vilmur. "Há coisas ocultas e desconhecidas. Nós preenchemos as áreas opacas com nossas ideias daquilo que ele é e daquilo que ele seria capaz de fazer".

Jonathan Kasdan, filho de Lawrence Kasdan, roteirista de "O Império Contra-Ataca", disse que Boba Fett gera fascinação duradoura ao combinar elementos visuais e narrativos familiares em um único personagem.

"Ele combina muitos gêneros –o filme policial, o western, a história de samurais, as lendas medievais– em uma só imagem emblemática", disse, Kasdan, que escreveu o roteiro de "Han Solo: Uma História Star Wars", com seu pai. "Eu poderia intelectualizar a questão tanto quanto quisesse", ele disse. "Mas o avesso da história é que ele representa uma figura de ação fantástica".

Novos quadrinhos, desenhos animados, contos e romances autorizados pela Lucasfilm continuaram a preencher as lacunas sobre as aventuras de Fett; algumas dessas histórias mostravam como ele escapou do monstro sarlacc e continuou a trabalhar como mercenário.

E quando a produção de filmes da saga "Star Wars" foi retomada, Fett continuou a encontrar espaço neles. O personagem teve mais uma aparição breve em um relançamento do filme original, em 1997, agora com o título "Star Wars: Episode 4 - A New Hope".

Em "Star Wars: Ataque dos Clones", lançado em 2002, surge a informação de que o jovem Boba (interpretado por Daniel Logan) era tanto filho quanto clone de outro soldado temível chamado Jango Fett (Temuera Morrison). A série de animação "Star Wars: The Clone Wars", que estreou em 2008, oferecia novos detalhes sobre a infância de Boba.

"Queríamos tratar daquilo que o transformou no personagem que veríamos mais tarde em ‘O Império Contra-Ataca’", disse Dave Filoni, roteirista, diretor superintendente e produtor executivo de "Clone Wars". "Quando seu pai foi morto por um jedi, ele mudou de maneira significativa. Você percebe que ele gostaria de espelhar seu pai, de se tornar seu pai e vestir sua armadura".

Soule disse que comparado a outros personagens cujas histórias foram contadas quase integralmente pelos filmes, Fett ainda tem muitos quadrantes fascinantemente inexplorados em sua trajetória pessoal. "Estamos falando de personagens sobre os quais vimos muita coisa, e é difícil encontrar figuras às quais ainda reste muito capital", ele disse. "Mas também há personagens cujas contas bancárias ainda têm muito saldo. Há muito capital restante na conta de Boba Fett".

Mas a popularidade de Fett entre os criadores de "Star Wars" quer dizer que nem todo mundo que deseja utilizá-lo consegue licença. Kasdan disse que gostaria de ter usado o personagem em "Han Solo", mas que tinha sido informado pela Lucasfilm de que "Boba não estava disponível, porque havia outras histórias em desenvolvimento para ele".

Os esforços iniciais do estúdio para criar um filme centrado em Boba Fett não deram resultado. Mas quando Favreau e seus colaboradores começaram a desenvolver "The Mandalorian", que estreou em 2019, se viram irresistivelmente atraídos a um protagonista que é caçador de recompensas, usa armadura e vive de acordo com um código pessoal, como Boba Fett.

Favreau explica que "tentamos nos reconectar com as raízes do que inspirou George. Um personagem mandalorian oferece a oportunidade de contar histórias simples, no espírito dos westerns que foram tão populares na televisão da época do meu pai".

Depois de mais uma participação especial enigmática –o que se vê dele é pouco mais que uma capa e um par de botas– na temporada inicial de "The Mandalorian", Boba Fett (agora interpretado por Morrison) voltou à série no ano seguinte.

O episódio final da segunda temporada de "The Mandalorian" preparou o terreno para "O Livro de Boba Fett", que tem Favreau e Filoni entre seus roteiristas e como produtores executivos. (Perguntado se a nova série explicaria de que maneia Fett sobreviveu ao monstro sarlacc, Filoni respondeu que "é muito mais empolgante ver o que aconteceu do que eu falar a respeito".)

Favreau, que dirigiu os dois primeiros filmes do Homem de Ferro para a Marvel, disse que as conexões entre os personagens no universo cinematográfico daquele estúdio acostumaram os espectadores a "ver personagens de uma mesma franquia aparecendo em diversas propriedades diferentes".

Ele acrescentou que "Star Wars" é "algo em que a audiência é um componente tão importante quanto os realizadores". O esforço narrativo para dar uma identidade estabelecida a Boba Fett e enquadrar seu passado de forma a explicar suas motivações não satisfez todos os fãs de "Star Wars".

"Eu jamais teria mostrado o rosto dele", disse Johnston. "Jamais permitiria que um ator tirasse o capacete para que o público veja quem ele é. Acho que isso elimina boa parte do mistério. Antes de o capacete ser tirado, ele pode ser qualquer um".

Mas Filoni disse que o streaming televisivo acostumou os espectadores a esperar que todos os ramos de uma narrativa estejam disponíveis para eles no momento em que eles escolhem assistir a qualquer parte da história.

Comparado ao momento em que ele primeiro viu "Star Wars" em uma sala de cinema, disse Filoni, "agora as pessoas podem assistir ao episódio quatro, ouvir Obi Wan falando das guerras dos clones, e basta um clique para que elas as acompanhem. Já eu saí do cinema perguntando ao meu por que ele tinha me levado para assistir ao quarto filme de uma série, e por que tínhamos perdido os três primeiros".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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