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Cena da minissérie "A Mais Pura Verdade" Adam Rose/Netflix

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Nova York
The New York Times

Conseguir a atenção de Kevin Hart, 42, ocasionalmente requer alguma perseverança, mas o esforço vale a pena. Ao chegar para nossa entrevista, no começo de uma tarde de quinta-feira, Hart estava envolvido em uma conversa telefônica que ele não conseguia ou queria encerrar.

Por alguns minutos, ele caminhou pelo MO Lounge do Mandarim Oriental Hotel, na parte central de Manhattan, com o celular encostado ao ouvido –aproximando-se tentadoramente de nossa mesa e depois mudando abruptamente de direção, enquanto a conversa prosseguia.

Depois, em uma sequência suave de movimentos, Hart desligou o telefone, deslizou para a cadeira diante de mim e entrou imediatamente em modo conversa. "Fale comigo, vamos lá", ele disse.

O ator e comediante Hart tem uma agenda sempre movimentada e parece gostar disso. A qualquer momento do dia ou da noite, é fácil encontrá-lo nas telas, em aventuras leves como os filmes da série "Jumanji", comédias dramáticas como "Amigos para Sempre" e "Paternidade", longas de animação como "Pets – A Vida Secreta dos Bichos", comerciais de TV para o banco Chase, especiais de stand-up ou seu programa de entrevistas "Hart to Heart", disponível nos Estados Unidos via streaming.

Horas depois de nossa conversa, surgiu a notícia de que o pequenino Hart interpretará o papel de Gary Coleman em uma versão repaginada de "Arnold", em um especial ao vivo para a TV. E na terça-feira, seu mais recente álbum de comédia, "Zero _____ Given", foi indicado para um Grammy.

A esse extenso currículo agora pode ser acrescentada a minissérie "A Mais Pura Verdade" para a Netflix, um thriller protagonizado por Hart no papel de uma celebridade que corre para encobrir uma morte que ele pode ou não ter causado.

Em "A Mais Pura Verdade", que estreou na semana passada, Hart interpreta um ator e comediante muito popular conhecido simplesmente como The Kid. Depois de uma noitada desastrosa com seu problemático irmão mais velho, Carlton (Wesley Snipes), The Kid acorda em um quarto de hotel ao lado do cadáver de uma mulher –e aí toma uma série de decisões mais e mais irresponsáveis com o objetivo de encobrir a morte dela e proteger sua carreira.

Seria lícito imaginar se Hart é de fato capaz de lidar com um papel como esse, que envolve situações de vida ou morte e cenas de ação ocasionalmente brutais. Mas o ator mesmo não parece preocupado com isso. Como me explicou Hart entre goles de café e mordidas em uma porção de fritas, "A Mais Pura Verdade" foi criado a fim de demonstrar que ele é tão competente em papéis dramáticos tensos quanto em outros gêneros de atuação. (Hart também é um dos produtores executivos da série.)

"Na hora de considerar tudo que fiz em minha carreira, as pessoas um dia vão perceber que tentei cobrir todos os quesitos", ele disse. "Um trabalho como esse é só uma forma de provar que sou capaz de fazer papéis desse tipo. Já está no meu currículo. Se eu tiver vontade de fazer qualquer coisa, vou criar um projeto que me ajude a matar essa vontade".

"A Mais Pura Verdade" nasceu dessa ambição e de conversas entre Hart e o produtor executivo Eric Newman, showrunner de séries sobre crime, a exemplo de "Narcos" e "Narcos: México".

Newman, o criador e um dos roteiristas de "A Mais Pura Verdade", disse em entrevista por telefone que Hart queria interpretar um papel parecido com ele, mas levado a tomar medidas desesperadas por algo que vê como uma ameaça à sua existência.

No entanto, disse Newman sobre o protagonista da série, "o que ele considera como uma ameaça à sua existência talvez seja diferente do que você ou eu consideraríamos. Eu talvez fosse levado a fazer alguma coisa horrível se meus filhos estivessem correndo riscos. Mas, no caso de uma celebridade, de uma pessoa famosa, a destruição de sua carreira pode ser um destino pior que a morte".

"A Mais Pura Verdade" é em boa medida uma história de ficção, mas a vida real de Hart também teve momentos dramáticos. Há apenas dois anos, ele passou por um acidente de automóvel no qual suas costas sofreram ferimentos graves, o que exigiu cirurgia e reabilitação. Hart diz que o acidente o levou a mudar. E já faz quase três anos que ele desistiu do convite para apresentar a cerimônia do Oscar depois que alguns gracejos e comentários que fez no passado foram criticados como homofóbicos.

Hart continua a refletir sobre a controvérsia relacionada ao Oscar, mas recebeu apoio público renovado do amigo e humorista Dave Chapelle, que em "The Closer", um especial recente para a Netflix, declarou que Hart havia sido tratado injustamente. ("The Closer" mesmo foi criticado por sua hostilidade aos transgênero e dezenas de empregados da Netflix fizeram um protesto contra o especial diante do escritório da empresa em Los Angeles no mês passado.)

Hart falou mais sobre seu desejo de produzir "A Mais Pura Verdade", sobre os fatos e a ficção por trás da série e sobre seu entendimento das críticas que ele e Chappelle receberam. Abaixo, trechos editados da conversa.

"A Mais Pura Verdade" é mais sombrio do que qualquer trabalho que você tenha feito até agora. O que o levou a querer fazer essa série?
A meta era apresentar um lado inesperado do meu talento. A melhor maneira de fazer isso era matar. Como é que eu mato diante das câmeras? Do modo mais bruto, sem hesitar. No mundo do entretenimento, o divertido é fazer as coisas que você não pode fazer na vida. Comédias apresentam oportunidades de ser engraçado de diferentes maneiras. Filmes sobre policiais parceiros. Filmes de ação e aventura. Tudo isso me deu um mundo onde pude brincar e me divertir. Esta série é o completo oposto. Continuo brincando, mas o contexto é totalmente sombrio.

Existe alguma probabilidade de que sua audiência não o aceite em algo como "A Mais Pura Verdade"?
Se você começa a trabalhar para satisfazer as percepções dos outros, não há como sair ganhando. A pessoa que mais acredita naquilo que você faz precisa ser você mesmo. Eu quero fazer um trabalho dramático porque sei que sou capaz disso. Por isso, decidi ir em frente e colocar o produto no mercado. Eu jamais conferiria um poder tão grande a qualquer outra pessoa, o de acreditar que a opinião de alguém mais pode controlar minha narrativa.

O que, em "Narcos", o levou a querer trabalhar com Eric Newman?
Eric faz com que você torça pelo vilão. Embora todos nós saibamos que Pablo Escobar morre, você ainda se apanha torcendo por Pablo quando ele está fugindo dos policiais, correndo pelo telhado. Você se apanha dizendo ‘vai, Pablo, foge daí’. No meu caso, minha ideia foi a de que ‘eu preciso ser crível trabalhando nesse gênero. Se vou mesmo matar alguém, como é que vou fazer com que as pessoas torçam por mim de alguma maneira?’

As demandas incessantes do mundo profissional em que The Kid vive em "A Mais Pura Verdade" parecem muito sacrificadas. É essa a sensação que o seu trabalho lhe causa?
Quando estávamos desenvolvendo a série, expliquei meu mundo a Eric. Todo mundo lhe dá sua energia, boa ou má. Os problemas que todo mundo tem. Todos dizem ‘preciso que você faça...’, ou ‘você poderia...’, ou ‘você sabe o que está acontecendo comigo, será que pode me ajudar?’ Quando é que essas coisas passam do limite? Ninguém gosta de ouvir que você não quer ou não pode fazer alguma coisa. E com isso você está sempre sendo pressionado.

Você sente, como o personagem, que existe uma tentação constante de se comportar mal?
(Palavrão) sim, sempre! É fácil fazer (palavrão) estúpidas. É algo que está lá ao alcance, sempre que você queira. Fazer a coisa certa, viver a vida corretamente, isso requer um esforço consciente. E dá trabalho. Não quero dizer, quando uso a expressão ‘dá trabalho’, que isso seja ruim, mas é preciso trabalhar constantemente para garantir que você está fazendo as coisas da maneira correta, da maneira apropriada. É preciso ter uma boa equipe e é preciso aprender a dizer não.

Como você convenceu Wesley Snipes a interpretar o papel de Carlton, o irmão de The Kid?
Quando começamos a aprofundar o personagem, percebemos que ele era uma peça muito importante do quebra-cabeças. Precisávamos de um ator muito bom para interpretá-lo, e o nome de Wesley Snipes foi sugerido. Nós não sabíamos se seria possível contratá-lo, e eu disse ‘vou entrar em contato’. Wesley achou que a série era de humor no começo e tive de explicar a ele que estava falando sério. Quando ele começou a ler os roteiros, ele disse: ‘Tudo bem, mas você vai ter de fazer um ótimo trabalho. Porque, se eu aceitar o convite, é isso que espero’. E eu respondi que ‘não precisa dizer mais nada’.

(Hart pede licença para ir ao banheiro. Na volta, ele está de novo no telefone, dessa vez falando com o cineasta F. Gary Gray, o diretor de "Lift", um filme sobre uma grande jogada criminal que tem Hart no elenco.)

Para trabalhar no ramo de entretenimento hoje em dia, você acha que é preciso ser equilibrista?
Minha realidade é insana. A quantidade de coisas que sou capaz de administrar e delegar e operar ao mesmo tempo é espantosa. É um talento dentro do meu talento. Ninguém no ramo é melhor do que eu em ‘multitasking’.

Suponho que você poderia baixar um pouco o ritmo se quisesse –fazer só um ou dois projetos por ano?
E aí faço o que com o resto do ano? (Risos.) Vou ficar olhando para a parede? Isso me deixaria louco, cara.

Dave Chappelle falou em sua defesa no final de seu novo especial na Netflix, "The Closer". Como você se sentiu a respeito?
Ele é um irmão para mim. Meu relacionamento com Dave é algo que valorizo, respeito e aprecio. Em nossa profissão, a mentalidade é de muita competição. Há essa percepção de que só pode existir um astro, um cara engraçado, e sempre nos colocam uns contra os outros. Mas se você tem a segurança e a confiança para admirar o talento alheio, defender o talento alheio, isso diz muito sobre quem você é. Chappelle opera em uma frequência diferente, cara, e tenho muito orgulho dele.

Você se preocupou com a possibilidade de o que ele disse reabrir a velha controvérsia ou de colocá-lo na posição de ter de defender Chappelle das críticas que ele vem recebendo?
Em que mundo um amigo não vai ser amigo quando ele quer ser amigo? No caso de Dave, acho que a mídia tem uma capacidade maravilhosa de criar a narrativa que deseja. Dentro dessa conversa que foi vinculada a Dave, ninguém está ouvindo o que ele diz. O que se ouve é uma narrativa que foi criada. Por isso, a conversa agora é amplificada para algo que nada tem a ver com aquilo que ela era no começo. E é aí que ela perde o rumo. Todo mundo precisa descer do palanque e procurar uma solução.

Mas existe um território comum entre Chappelle e as pessoas que se sentiram magoadas com "The Closer"?
Aquele cara não tem uma gota de ódio no corpo. E não digo isso hipoteticamente. Digo porque o conheço. Conheço seu mundo. Sei que ele apoia a comunidade LGBTQ+ porque tem amigos nessa comunidade, gente próxima a ele. Sei que os filhos dele compreendem igualdade, tratamento justo, amor. Sei que a mulher dele incorporou isso à educação dos filhos. Sei porque as pessoas gostam dele. Ele é um bom cara.

Você concorda com o argumento –apresentado por alguns dos defensores de Chappelle e que surge frequentemente quando um humorista é criticado por ser insensível– de que qualquer coisa é permissível, no contexto de uma piada?
Não é algo que se possa dizer. ‘Isso é só uma piada’, certo? Compreendo que haja pessoas que gostariam que as coisas fossem assim. Mas não são. Um gracejo é uma tentativa de ser engraçado. E as pessoas podem considerar que o gracejo é de bom gosto ou de mau gosto. Se você gosta de um artista, provavelmente vai achar que o que quer que esteja acontecendo é bacana. Mas se não é, você pode se indignar e enfurecer. Com razão –a pessoa tem todos os motivos para isso. E o direito de não apoiar o que foi dito. Mas a energia dedicada a mudar ou a pôr fim a alguém está escapando ao controle.

A experiência lhe ofereceu uma nova perspectiva sobre o momento em que você foi criticado por declarações passadas?
Eu consigo entender o que está acontecendo por ter passado por isso. A diferença, no que me aconteceu, é que aprendi uma lição sobre ego. Meu ego me cegou ao ponto de me impedir de ver qual era a questão real. Meu ego me levou a pensar: vocês querem que eu me desculpe? Já me desculpei. Há 10 anos. Por que é que vocês estão me tratando como se eu tivesse dito essas coisas agora?

Mas a questão não eram as pessoas que talvez soubessem que eu me desculpei e talvez não. Eram as pessoas que queriam ter certeza de que não apoio a violência em qualquer forma. O fato de eu não ter percebido isso não faz de mim uma pessoa odienta. Faz de mim alguém que deixou de prestar atenção por um momento, porque eu estava preocupado com minha própria (palavrão). Sou humano. Isso é algo que não se pode perder. E é o que está acontecendo agora. É o que estamos perdendo, na tentativa de dizer ‘estou certo, você está errado, e é isso’. Não dá para entender como é que nós viemos a evoluir.

É estranho que humoristas recebam tamanha atenção e que as palavras deles tenham tanto peso?
Não se pode ignorar a atenção que o palco em que estamos nos vale. A coisa de que você precisa ter mais consciência hoje é que as palavras têm impacto. Já que você dispõe de uma plataforma, tem uma escolha a fazer a cada vez que você fala. Se você quer dizer certas coisas, é seu direito. E essas coisas sobre as quais você escolhe falar podem gerar reações adversas. Se você aceita bem o positivo e o negativo da situação, a escolha é sua.

Sou muito mais consciente hoje do que era no passado e mais atento às coisas que digo. Busco garantir que eu esteja sempre do lado da compreensão. Isso não reduz minha capacidade de ser eu mesmo. Mas significa que, ao ser eu mesmo, preciso garantir que minha abordagem seja respeitosa.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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