Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Regina King como Trudy Smith em cena do filme "Vingança e Castigo", da Netflix David Lee/Netflix

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Laura Zornosa
The New York Times

ALERTA SPOILER: Reportagem contém spoiler de cenas importantes do filme.

"Eu cuido de Trudy", diz Stagecoach Mary Fields (interpretada por Zazie Beetz), com fúria no olhar. Trudy Smith (Regina King) entra no galpão, cujas vigas pendem tecidos coloridos, em postura de combate. As duas se olham nos olhos. Mary dispara sua espingarda, apontando para o chão. Trudy joga fora o revólver.

"Vamos lá", ruge Mary. E o que vem a seguir é uma cena feroz de combate entre as duas integrantes de gangues rivais de caubóis. Corpos são arremessados contra paredes, dentes mordem mãos, ferraduras são atiradas contra cabeças.

Perto do final de "Vingança e Castigo", novo faroeste da Netflix que serve como lembrete de que caubóis negros deveriam ser parte tão importante do gênero quanto os vaqueiros de qualquer outra raça, Mary e Trudy se encaram em um combate épico que quase termina em morte.

O diretor do filme, Jeymes Samuel, é um cantor e compositor conhecido no mundo da música como Bullitts, mas ele já tinha trabalhado ocasionalmente em cinema. "Vingança e Castigo" é seu primeiro longa-metragem. Em uma entrevista por vídeo, Samuel esclareceu que não estava tentando repaginar o western e que o que estava fazendo era "substitui-lo".

"O que fiz com aquela luta, fiz no filme inteiro", ele disse. "O filme inteiro é a psicologia reversa daquilo que conhecemos como western, e ergue um espelho para o gênero".

Historiadores estimam que cerca de um quarto dos caubóis eram negros no século 19, fato que não costumava ser refletido nos westerns convencionais que foram populares no século 20 e cujos elencos quase não incluíam pessoas não brancas.

Ao criar o filme, o objetivo de Samuel era rebater dois clichês dos westerns tradicionais: o de que as pessoas não brancas são menos que humanas e o de que as mulheres devem ser subservientes e inferiores aos homens. "Os westerns jamais deram luz e poder às mulheres daquele período", disse o diretor. É por isso que ele decidiu inverter os papéis habituais de gênero na luta entre Mary e Trudy.

"Todos os homens do filme logo apanham as armas quando entram em conflito", disse Samuel, acrescentando que "é só quando o conflito envolve duas mulheres que elas escolhem jogar fora as armas e resolver no braço".

Ainda que as atrizes, parte de um elenco estrelado, tenham trabalhado em estreito contato com suas dublês, Nikkilette Wright e Sadiqua Bynum, a maior parte das cenas do combate final envolvem trabalho pessoal de Beetz e King –porque as dublês eram simplesmente boas demais em suas funções. As ações das dublês eram "limpas demais", disse Samuel.

"Naquela cena específica, o que tínhamos era um resultado limpo e perfeito, mas o que eu precisava era de urgência. E quando colocamos Zazie e Regina para brigar, a precisão excessiva dos movimentos desapareceu".

Beetz, King, Wright e Bynum ensaiaram a luta em suas horas vagas, em uma sala de reunião em um hotel de Santa Fé, Novo México, onde boa parte do filme foi rodada. Por mais bruta que a cena pareça na tela, disse Beetz em uma entrevista por telefone, foi tudo cuidadosamente coreografado.

"Queríamos que a luta parecesse suja, porque queríamos que parecesse real e intensa e mostrasse como pessoas de verdade provavelmente lutariam", ela disse. "Acho que isso é uma prova clara das mudanças que estão acontecendo no cinema e das mudanças na maneira pela qual vemos as mulheres e suas capacidades físicas".

Como parte de sua preparação, as atrizes leram sobre Stagecoach Mary Fields, a primeira mulher negra dos Estados Unidos a trabalhar como carteira nas rotas "star" –rotas que eram servidas por empreendedores autônomos que não eram empregados dos correios. (Muitos dos personagens principais se baseiam em figuras reais, mas a vasta maioria da trama foi inventada por Samuel.) Fields foi escrava até por volta dos 30 anos de idade, quando surgiu a Proclamação de Emancipação. Depois, ela passou a viver uma vida completamente nova.

"Muitas pessoas que tinham sido escravas decidiram se mudar para o oeste porque a cultura dos Estados Unidos não estava tão estabelecida no oeste", disse Beetz. "Assim, existia mais mobilidade para as pessoas negras. E havia cidades inteiramente negras e capazes de se sustentar de forma autônoma; eram lugares interessantes nos quais as pessoas negras tinham a possibilidade de prosperar".

Em "Vingança e Castigo", o criminoso Rufus Buck (Idris Elba), que saiu recentemente da prisão, planeja fundar uma cidade inteiramente negra, uma espécie de centro para os negros no velho oeste. Trudy Smith é a principal capanga de Buck, e o rival dele é o fora da lei Nat Love (Jonathan Majors), que busca vingança. King, falando por telefone, disse que um western mais convencional teria escalado Nat e Rufus para a briga decisiva.

É claro que ela e Beetz jamais teriam conseguido filmar uma cena tão intensa se não fosse por Bynum e Wright. (Bynum também serviu como dublê para King em "Watchmen", série da HBO.) Segundo King, dublês dependem dos atores e atores dependem dos dublês.

"Nunca fui fã de westerns, mas gostei desse filme", disse a atriz. "Creio que isso seja um indicador de que talvez seja possível conquistar novos fãs –se tivermos mais cenas" como as da briga entre Trudy e Mary.

A cena acontece ao som de uma versão ao vivo de "Let’s Start", do nigeriano Fela Kuti, pioneiro do afrobeat. (A música é especialmente importante para Samuel, que também é produtor musical.)

No momento em que Mary entra no galpão, ouvimos Kuti dizer "vamos tocar nossa primeira canção da noite". "E ela se chama ‘O l’oun t’awa se n’yara. Je k’abere’", ele diz, em ioruba, enquanto as duas mulheres se encaram. "O que significa ‘vamos começar a fazer o que viemos aqui para fazer’", diz Kuti. E então Mary e Trudy deixam as armas de lado e a briga começa.

"Essa é uma música muito caubói", disse Samuel. "A música é puro western. Como é que nunca usaram essa música para uma cena de velho oeste antes? Como é que essa música nunca esteve, para começar, no cinema, mas especialmente em um filme de caubói? É um encaixe perfeito".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem