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Julie Delpy Elliott Verdier/The New York Times

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Dina Gachman
The New York Times

Julie Delpy, 51, não mede palavras quando o assunto é a mulher e as idades da mulher.

“Ter 50 anos não é o novo equivalente aos 30”, ela disse durante uma recente conversa por vídeo de seu quarto de hotel em Paris. Ela estava lá para promover sua minissérie de TV, “On The Verge”, uma produção de 12 episódios que Delpy escreveu, produziu e estrela.

“Há uma coisa quase cruel quanto às mulheres que já não são capazes de procriar; o que passamos a ser?”, disse Delpy, que também dirigiu diversos episódios da série. “Mais tarde, depois dos 70 anos, você se torna avó e volta a existir. Mas há essa zona morta”.

Coprodução entre a Netflix e o Canal+, “On The Verge” (“À Beira do Caos) é uma comédia absurda, mas muito fincada na realidade que acompanha quatro amigas, quase todas bem-sucedidas materialmente, em sua luta para se enquadrar à meia-idade em Los Angeles.

A ideia parece ter encontrado uma audiência à espera e rapidamente chegou à lista de dez programas mais vistos da Netflix nos Estados Unidos, ocupando o sétimo lugar no final de semana seguinte a sua estreia, no início de setembro.

Zona morta nenhuma. E nada mau para uma série realista e baseada em diálogo e que alterna idiomas entre o francês e o inglês.

Delpy construiu uma carreira com base em sua interpretação de mulheres astutas em filmes cuja ação transcorre quase o tempo todo em caminhadas, trens ou em torno de mesas de jantar. Nem sempre foi fácil transportar seus personagens da página para a tela, ela disse, e as coisas se tornaram especialmente complicadas quando ela começou a escrever sobre mulheres de sua idade.

De acordo com a fórmula usual das comédias românticas, mulheres de seus 20 e 30 anos são muitas vezes mostradas como confusas, sempre em busca de uma compreensão melhor das coisas e isso supostamente deve ser considerado fofo.

Mas no caso de uma mulher de 40 ou 50 anos –ou seja, para as mulheres que vivem o período posterior ao final feliz—, a expectativa é de que ela tenha tudo bem resolvido, certo? Em “On The Verge”, essa ideia é literalmente uma piada.

“Amei o fato de que todas as personagens estejam só começando a encontrar sua confiança, ainda que estejam perto dos 50”, disse Elizabeth Shue, uma das produtoras executivas e estrelas da série. Ela descreve a gravação de uma cena de jantar específica, no episódio dois, que, em sua opinião, foi “um reflexo perfeito da sensibilidade artística de Julie”. “Era uma mistura adorável de insanidade e humor nascido da insegurança e do caos”, ela disse.

Na série, Delpy interpreta Justine, uma chefe de cozinha bem-sucedida em um restaurante movimentado. Ela está escrevendo um livro de culinária, mas sem deixar de trabalhar longas horas no restaurante, criar um filho pequeno e lidar com uma constante barragem de insultos rabugentos e agressão passiva vindos de seu marido desempregado.

Shue interpreta sua amiga Anne, estilista vinda de uma família rica que fuma cigarros eletrônicos sem parar e cujo marido enfrenta dificuldades para aceitar o filho, cuja opção de gênero é fluida.

Sarah Jones, ganhadora do Tony, interpreta Yasmin, casada e mãe, que escolheu abandonar sua carreira e agora parece desesperada para encontrar alguma coisa a que se dedicar. Alexia Landeau (que colaborou com Delpy nos roteiros de diversos episódios e é outra das produtoras executivas) faz o pape de Ell, desempregada e mãe solteira de três filhos, cada um de um pai.

A despeito das dificuldades das personagens, “On The Verge” é essencialmente uma comédia, e Delpy não tem medo de brincar sobre tópicos sérios como o estresse das mães trabalhadoras, a masculinidade tóxica ou o preconceito de idade.

Yasmin é entrevistada por uma mulher que tem metade de sua idade e ouve que, basicamente, está velha demais para um emprego. Quando Yasmin entra em pânico e leva as mãos ao peito, a entrevistadora pergunta se ela está tendo um ataque cardíaco.

A cena detalha uma experiência que ecoará para muitas mulheres. Delpy dá à audiência permissão para rir, ainda que as mulheres também fiquem indignadas com o que estão vendo. “Tenho 46 anos, não 96!”, rebate Yasmin.

Essa sensibilidade humorística e cerebral é algo que Delpy veio aperfeiçoando ao longo de toda a sua carreira. Os pais dela, Albert Delpy e Marie Pillet, eram atores (os dois interpretaram os pais da personagem da filha em “Dois Dias em Paris” (2007), um longa de Delpy.

Ela cresceu na França cercada de artistas, atores de teatro e escritores. Seu primeiro papel nas telas veio aos 14 anos, quando Jean-Luc Godard a escalou para “Detetive”, que ele dirigiu em 1985. Ela também trabalhou com Agnieszka Holland em “Europa Europa”, filme premiado com o Globo de Ouro, e com Krzysztof Kieslowski na “Trilogia das Cores”.

Delpy passou boa parte da infância nos bastidores do teatro experimental de seus pais ou dançando, tocando e escrevendo como quisesse. Mais tarde, ela estudou cinema na Universidade de Nova York. É essa mistura de experimentação e estrutura (Delpy se apressa a apontar que a série é cuidadosamente roteirizada) que ela mostra em “On The Verge”.

“É sofisticação obliterada pelo absurdo”, disse Giovanni Ribisi, que interpreta o chefe adorável, mas irritante de Justine, falando sobre a sensibilidade de Delpy. “Julie deixou sua marca com um estilo muito pessoal. Ela é uma artesã, tem muita personalidade. Como as pessoas tinham na década de 1970”.

Quando Delpy fez o papel de Céline, trabalhando com Ethan Hawke em “Antes do Amanhecer” (1995), de Richard Linklater, a personagem dela teve uma ressonância forte junto à geração de mulheres que tinham 20 e poucos anos na década de 1990 –as espectadoras ficaram encantadas ao ver uma protagonista capaz de ser ao mesmo tempo filosófica e engraçada.

“Antes do Amanhecer”, filmado com orçamento modesto, provou para as audiências e os críticos que uma história simples sobre duas pessoas que se conhecem em um trem e conversam a noite toda tinha capacidade de se tornar um dos filmes românticos mais duradouros da década de 1990.

Delpy, mais tarde, colaboraria com Linklater e Hawke na produção de duas sequências, “Antes do Pôr-do-Sol” e “Antes da Meia-Noite”, e foi indicada para o Oscar de melhor roteiro adaptado pelos dois filmes.

Ela já dirigiu sete filmes, entre os quais o drama “My Zoe”, lançado este ano. Com “On The Verge”, ela pode encarar temas que lhe são caros, mostrar seu talento cômico e explorar as vidas de mulheres que, mesmo na casa dos 40 e dos 50 anos, merecem mais do que apenas algumas linhas passageiras de diálogo. “É divertido poder falar de coisas reais”, disse Delpy. “Embora tenha sido um pouco difícil chegar lá”.

Delpy começou a pensar sobre as quatro personagens principais de “On The Verge” em 2013, e logo escreveu um roteiro. Algumas pessoas se interessaram pelo projeto ao longo dos anos quando ela o apresentou, mas os financistas e os estúdios relutavam em produzir “uma série sobre mulheres nessa faixa de idade”, ela disse.

“Acho que a série terminou por acontecer porque as pessoas estavam prontas”, disse Delpy. “O momento certo chegou, enfim”.

Olivier Gauriat, um dos produtores executivos da série, assinou para fazer o projeto em 2019 porque era fã do trabalho de Delpy, nas telas e fora delas. Mas ele também se sentiu atraído pelo que ela estava tentando fazer em “On The Verge” com relação à representação feminina e questões de idade.

“Não existem muitas séries que girem em torno de mulheres dessa idade”, disse Gauriat. “O Canal+ e a Netflix nos deram muito apoio e acho que a ideia provou ser interessante para eles. Eles deram carta branca a Julie”.

A pré-produção de “On The Verge” começou antes da pandemia, mas terminou paralisada quando Hollywood inteira parou. Delpy voltou aos roteiros. Ela ajustou certas partes da trama para refletir o que estava acontecendo no mundo. Quando as gravações enfim começaram, ela havia revisado a linha do tempo para que a história se passasse em janeiro e fevereiro de 2020, oito semanas em que a crise já estava ganhando força, mas poucas pessoas compreendiam o que estava por vir.

Vista 18 meses mais tarde, “On The Verge” parece uma cápsula do tempo sobre os dias iniciais da crise, antes que as pessoas começassem a fazer estoques de papel higiênico e caçar máscaras N95 no varejo.

Delpy decidiu que queria incorporar acontecimentos do mundo real porque as personagens, como afirma o título, estavam à beira de alguma coisa nova e desconhecida, e o mesmo se aplicava ao mundo que as cerca. “Tudo está mudando para as personagens, mas tudo está mudando também para o mundo”, ela disse.

As coisas bem podem estar mudando, mas Delpy não abriga ilusões de que as mulheres acima dos 40 anos se tornem de repente a nova tendência. Existe um momento em “On The Verge” em que Jerry diz a Justine que “você está em um ponto cego cultural” —ou seja, ninguém liga para mulheres da idade dela.

É engraçado porque é tão absurdamente insultuoso. Também é engraçado porque soa verdadeiro. “A série fala de não precisar mentir sobre a idade que você tem”, acrescentou Delpy. “E nem fingir ser outra pessoa”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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