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Andrew Garfield Alana Paterson/The New York Times

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Kyle Buchanan
The New York Times

Jon (Andrew Garfield) está dando uma festa, embora praticamente não haja motivos para celebrar. Ele vive ansioso, seu apartamento minúsculo está superlotado de convidados, e ele acaba de gastar um dinheiro que nem mesmo tem, como se estivesse pagando a entrada para um sucesso que não está destinado a surgir em sua vida.

Mas ainda assim, com um sorriso largo, Jon brinda os amigos, pula para cima do sofá e canta: “Isso é que é vida!”. Jon é Jonathan Larson, compositor e dramaturgo que morreu repentinamente, de um aneurisma na aorta, aos 35 anos de idade, em 1996, pouco antes da estreia de seu novo musical, “Rent”, que se tornaria sucesso mundial.

“Tick, Tick... Boom!”, um filme recém-lançado, retrata Larson na batalha pelo sucesso, pouco antes de chegar aos 30 anos, e angustiado sobre se não seria melhor desistir e procurar um jeito mais convencional de ganhar a vida, em lugar de uma carreira como compositor de musicais.

Larson criou “Tick, Tick... Boom!” originalmente como um espetáculo solo, “Boho Days”, e o encenou na década de 1990. Depois de sua morte, o texto foi reescrito pelo dramaturgo David Auburn como uma peça para três personagens, a que Lin-Manuel Miranda, o criador de “Hamilton”, assistiu em seu ano final de universidade, em 2001.

“Lá estava um musical póstumo, do cara que me levou a querer escrever musicais, para começar”, disse Miranda, que faz sua estreia como diretor de longas com o filme. Miranda viu Andrew Garfield, 38, na produção de “Angels in America” na Broadway em 2018, e considerou o trabalho do ator “transcendente”, no espetáculo.

“Saí de lá pensando que um cara como ele era capaz de fazer qualquer papel”, o diretor recorda. “Eu não sabia se ele era capaz de cantar, mas minha sensação era a de que ele podia tudo. Por isso, o escalei para o papel, em minha cabeça, um ano antes de conversar com ele a respeito”.

Miranda ensaiou Garfield rigorosamente, encaminhando-o a um professor de canto e garantindo que o ator aprendesse piano com habilidade suficiente para que a câmera pudesse acompanhar os movimentos de suas mãos no teclado durante todo o filme.

Mas esses são apenas os aspectos técnicos de um desempenho incrivelmente seguro: Garfield interpreta o passional e frustrado Larson com zelo e verve suficientes para acender todos os luminosos da Broadway.

Tudo isso é parte de um final de ano muito movimentado para o ator, que recentemente filmou “The Eyes of Tammy Faye” como o evangelista televisivo caído em desgraça Jim Bakker, e, corre o boato, deve contracenar com Tom Holland e Tobey Maguire em “Homem Aranha: Sem Volta para Casa”, que sai em dezembro.

Quanto a essa reunião altamente secreta de super-heróis, Garfield não está autorizado a comentar coisa alguma. Mas fica claro que “Tick, Tick... Boom!” foi muito mais importante para ele do que Garfield inicialmente imaginava.

“É uma coisa estranha quando há uma pessoa como Jon, com a qual você não teve qualquer relacionamento prévio, e de repente surge uma conexão eterna da qual eu nunca, nunca mesmo, pretendo abrir mão”, me disse Garfield em uma recente conversa por vídeo de Calgary, Canadá, onde ele está filmando a minissérie “Under the Banner of Heaven”.

“Fico muito feliz por Jon ter sido revelado para mim, porque nem me lembro da pessoa que eu era antes de saber que ele existiu”. Abaixo, trechos editados de nossa conversa.


Como o trabalho em “Tick, Tick... Boom!” chegou a você originalmente?
Um de meus melhores amigos em Nova York é Gregg Miele, e ele é um dos massagistas e especialistas em condicionamento físicos mais conhecidos da cidade –trabalha com todos os bailarinos, cantores e atores da Broadway, e com muito mais gente.

Ele estava massageando Lin, certa manhã, e Lin perguntou: “Andrew Garfield sabe cantar?” E Gregg, sendo um ótimo amigo como é, basicamente mentiu e disse “sim, ele é o melhor cantor que já ouvi”. Depois, ele me ligou e disse que “ei, faça aulas de canto, porque Lin vai te convidar para alguma coisa”.

Lin e eu saímos para almoçar, e ele me falou brevemente do filme e de Jon. Na minha história, eu não tive muito contato com o teatro musical –foi algo que só vim a conhecer nos últimos anos, para dizer a verdade. Por isso, Lin me mandou uma cópia das partituras e letras, e escreveu, na primeira página: “Isso não vai fazer sentido agora, mas um dia fará. Siempre, Lin”.

Você trabalhou em peças como “Angels in America” e “Morte de um Caixeiro Viajante” na Broadway, mas no filme Lin o cercou de muita gente do teatro musical, e mesmo alguns dos papéis menores e das pontas são interpretados por gente importante daquele universo. Deve ter sido assustador entrar no estúdio.
Lembro-me de um momento muito específico, um ensaio musical. Alex Lacamoire estava no piano, nos mostrando as músicas –ele é o arranjador e produtor musical de Lin–, e eu estava com Robin de Jesus, Vanessa Hudgens, Josh Henry e Alex Shipp (seus companheiros de elenco em “Tick, Tick... Boom!”).

Imagine como eu estava me sentindo! Eles todos são grandes profissionais, e estavam lá, de olho no meu desempenho. Eu pensei comigo mesmo que “meu Deus, vou morrer”. E aí chegou a hora de eu cantar, e eu lá, batalhando para chegar ao fim. Lembro-me de Alex dizer “uau, Andrew”.

E de repente as pessoas por trás dele, Josh e Vanessa, Alex e Robin, estavam me dizendo “é, baby, é isso, baby”. Fiquei roxo de vergonha e passei cinco minutos só pedindo desculpas. Comecei a chorar e disse que não sabia se tinha passado por um momento mais feliz em minha vida, o de me sentir cercado pelos mentirosos mais positivos que já conheci.

Jonathan passa o filme ansioso sobre um tique que só ele consegue ouvir. Como você interpretou isso?
Havia uma linha no “one-man show” original, “Boho Days”, em que ele dizia que “às vezes sinto que meu coração vai explodir”. Isso parecia literal demais para as pessoas, depois que ele morreu, e a linha foi cortada, mas ele passa a história toda tentando descobrir o que é aquele barulho.

“Será que é porque estou chegando aos 30? Será que é porque não fiz sucesso? É alguma ideia inconsciente sobre o relógio biológico da minha namorada, combinada à pressão de minha carreira? Ou será por causa de todos os meus amigos que estão morrendo tão jovens por causa da epidemia da Aids?”

Também podia ser um metrônomo musical. Da maneira que você interpreta Jonathan, como uma pessoa de teatro com sentimentos muito profundos e urgentes, é quase como se ele precisasse começar a cantar, porque a vida normal não era suficiente.
Todos os controles dele estavam no 11. Mesmo quando ele estava fazendo amor, era no 11. Ele parecia saber de alguma maneira que tudo ia acabar, que tudo era tão efêmero, e acho que ele estava aguda e dolorosamente consciente de que não chegaria a ouvir algumas de suas composições cantadas no palco.

E acho também que ele estava dolorosamente consciente de que não ia obter o reconhecimento e o prestígio que sabia merecer, pelo menos não enquanto ainda estava vivo. No dia final da filmagem, o que entendi foi que Jon tinha compreendido tudo.

Sabia que sua caminhada seria curta, e sagrada, e tinha muitas chaves e muitos segredos sobre como devemos viver com nós mesmos e com os outros, e como encontrar significado em nossa passagem por aqui. Assim que ele aceitou tudo isso, ele pôde se tornar parte plena do mundo, e assim pôde escrever “Rent”.

Não acho que isso tenha acontecido por acidente. Aquele conhecimento muito visceral da perda, da morte, é o que dá tamanho significado a tudo. E sem essa consciência, todos sucumbiremos à insignificância.

Que tipo de significado essa história propiciou a você?
Cada quadro, cada momento, cada respiração, no filme, é uma tentativa de honrar Jon. E, em nível mais pessoal, é uma forma de honrar minha mãe. Foi ela que me mostrou para onde eu deveria ir em minha vida. Foi ela que me colocou no caminho.

Nós a perdemos pouco antes da Covid, e pouco antes do início da filmagem, depois de uma longa batalha contra o câncer pancreático. Assim, para mim o importante foi poder continuar a canção dela, em meio ao oceano e às ondas das canções de Jon.

Foi uma tentativa de honrá-lo em sua canção inacabada, e de honrá-la em sua canção inacabada, e de levá-los a se encontrar. Creio que esse seja parte do motivo para que eu não quisesse que o filme chegasse ao fim, porque queria transformar meu pesar em arte, em arte criativa.

O privilégio de minha vida foi poder estar ao lado de minha mãe, ser a pessoa que lhe deu permissão quando ela estava pronta. Tínhamos uma conexão maravilhosa, e agora a audiência conhecerá o espírito dela de modo inconsciente, por intermédio de Jon, o que considero muito mágico e muito bonito.

Mas ainda assim houve muita coisa a enfrentar durante a filmagem. Não pode ter sido fácil.
Eu hesitei quando pensei em falar sobre isso, mas sinto que é uma experiência universal. Na melhor das hipóteses, uma pessoa perde os pais e não o contrário, e por isso considero-me afortunado por ter podido estar ao lado dela no momento em que ela se foi, e de ler seus poemas favoritos para ela, tomar conta dela, de meu pai e de meu irmão.

Já perdi pessoas no passado, mas perder a mãe é diferente. Ela é a pessoa que nos dá a vida, e já não está conosco. Não há o que possa nos preparar para um cataclismo como esse. Para mim, tudo mudou. Onde no passado existia um riacho, agora existe uma montanha; onde havia um vulcão, agora existe uma pradaria. É uma viagem mental estranha.

Você coloca partes de si em outra pessoa, quase como se elas guiassem quem você é. E quando você perde essas pessoas, é você que se torna seu guia.
Como você diz., é como se minha mãe agora vivesse em mim de uma maneira talvez mais forte do que quando ela estava viva. Sinto sua essência. Para mim, isso só acontece quando você aprende a aceitar a perda, e é difícil para nós fazê-lo, em nossa cultura, porque não temos o enquadramento ou as ferramentas necessários.

Somos instruídos a viver na ilusão e na negação dessa coisa universal e compulsória que todos encararemos em algum momento, e é fascinante para mim que a grande aventura da morte não seja honrada como deveria.

De fato, a única coisa que confere significado a isso é se caminharmos mantendo a morte no cantinho do olho esquerdo. É a única maneira de estarmos cientes de que estamos vivos naquele momento. Acho que esse é o legado que Jon deixa, e o legado que minha mãe me deixa, pessoalmente, o de simplesmente estar aqui. Porque não estaremos aqui por muito tempo.

Isso me lembra da mensagem escrita em seu roteiro antes que tudo acontecesse. “Isso não vai fazer sentido agora, mas um dia fará”.
“Você não compreende agora, mas um dia compreenderá”. Continuo oscilando, com o peso de absorver aquilo que a vida de Jon significava, aquilo que a vida de minha mãe significava, aquilo que todas as vidas significam. Meu Deus, que sorte eu tive de poder explorar isso em um dos meus trabalhos!

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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