Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Kirsten Dunst Erik Carter/The New York Times

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Kyle Buchanan
The New York Times

As duas coisas que Kirsten Dunst, 39, mais queria em sua viagem à Itália era dormir bastante no avião e tomar um bellini ao chegar. Qualquer coisa mais, ela estava determinada a encarar como presente. E ela terminou recebendo muitos presentes.

Dunst tinha viajado à Itália para o Festival de Cinema de Veneza, no qual estrearia “The Power of the Dog”, um novo filme da Netflix dirigido por Jane Campion e que traz um dos melhores desempenhos da carreira da atriz.

Ela chegou no último dia de agosto, depois de meses em casa cuidando do filho recém-nascido, e de um ano inteiro passado em casa antes disso por causa da, bem, todo mundo sabe. Por isso, é fácil imaginar como Dunst se sentia ao desembarcar do avião, tomar um barco enquanto o sol punha e acelerar rumo ao seu hotel com as luzes de Veneza brilhando no crepúsculo.

Contemplando o panorama, os olhos da atriz se encheram de lágrimas: um dia inteiro de viagem aérea, quatro meses sem dormir cuidando de um bebê, e a cidade mais bonita que você já viu na vida podem ter esse efeito sobre uma pessoa.

As 48 horas seguintes foram um torvelinho. Dunst tentou superar o jet lag e descansar na piscina do hotel, onde saboreou bellinis na companhia do irmão e ficou de olho nas peripécias aquáticas de velhinhos italianos endinheirados.

No dia seguinte, ela colocou um vestido Armani Privé que parecia lhe oferecer completa blindagem, e acompanhou Campion e o seu colega de elenco no filme, Benedict Cumberbatch, para a estreia na Sala Grande.

Depois que o filme terminou, a plateia aplaudiu “The Power of Dog” de pé por diversos minutos, e Campion e o elenco ostentavam grandes sorrisos. As coisas não poderiam ter ido melhor. Dunst estava emocionada? “A experiência me deixou chapada”, ela me disse mais tarde, “mas ao mesmo tempo me sentindo exausta por dentro”.

Mesmo quando sorri, Dunst é capaz de sugerir que alguma coisa mais complexa está acontecendo por sob a superfície. É um talento que a serviu bem em “The Power of the Dog”, baseado em um romance de Thomas Savage e estrelado por Cumberbatch no papel de Phil, um agricultor sádico de Montana (EUA) em 1925.

Por toda a vida dos dois, Phil manteve seu irmão mais novo, George (Jesse Plemons) sob seu controle, mas quando George vem a conhecer a melancólica Rose (Dunst), e se casa com ela impulsivamente, Phil se ressente da intrusão da mulher, e decide destruí-la.

Assim, a pobre Rose se vê apanhada em uma armadilha: George adora a noiva e a encoraja a se abrir, mas qualquer coisa que Rose expõe a seu respeito é uma vulnerabilidade que Phil pode usar contra ela. Mesmo depois que Rose começa a recorrer ao álcool para lidar com a truculência de Phil, nós a ouvimos sussurrar: “Ele é só um homem”. Mas a maneira pela qual Dunst pronuncia o diálogo, como se mal acreditasse no que diz, indica que Rose sabe muito bem do mal que os homens podem causar.

“The Power of the Dog” é o primeiro longa de Campion em mais de uma década, e está se tornando o filme mais elogiado da cineasta desde “O Piano” (1993), mas também serve como exemplo de uma das mais notáveis reinvenções de carreira em Hollywood: depois de anos de concentração em papéis de loiras doces e despreocupadas, Dunst de repente se transformou em uma das destacadas cronistas do desespero finamente cinzelado.

Pense em “Melancolia”, na qual a depressão de Dunst chega a níveis apocalípticos antes de explodir em um final violento; ou na maneira pela qual seus diálogos engraçadinhos vêm sempre tingidos de acidez em “Quatro Amigas e um Casamento”; ou em “O Estranho que Nós Amamos”, de Sofia Coppola, no qual Dunst abriga uma solidão tão pessoal que contemplá-la parece uma intrusão.

Mesmo em trabalhos para a TV como as séries “Fargo” e “On Becoming a God in Central Florida”, Dunst interpreta papéis com um lado cômico acentuado mas garante que eles sempre operem da perspectiva de uma decepção profundamente entranhada. Ela já sentiu esse tipo de coisa, e faz com que o espectador sinta o mesmo.

“Ela tem profundidade. Viu coisas, sabe coisas”, me disse Campion. “O que acho mais incrível é que ela sempre esteja muito na emoção do momento. Gera empatia imediatamente”. Perguntei a Dunst como é que ela consegue fazer isso, e ela refletiu sobre a questão por algum tempo.

“Não tenho medo de compartilhar minha dor”, ela respondeu, por fim. “Não ergo qualquer barreira quando se trata de compartilhar essas partes de mim. E meu trabalho é compartilhar todas essas coisas”. Poucos dias antes da viagem de Dunst para a Itália, fui à sua casa em estilo rural em Los Angeles, onde ela atendeu à porta com os cabelos presos por trás das orelhas e carregando um bebê grandalhão nos braços.

“Esse é o mais novo, o Big Kahuna”, ela disse, me apresentando seu filho, de quatro meses de idade e mais de oito quilos de peso, James Robert. “É um anjinho. Mas um anjo faminto. E pesado”. James é o segundo filho de Dunst com Plemons, seu colega de elenco em “The Power of the Dog”. Os dois se conheceram em 2015, quando o destino os escalou como marido e mulher na segunda temporada da série “Fargo”.

Plemons estava ausente há alguns meses, filmando “Killers of the Flower Moon”, um drama de Martin Scorsese, e Dunst vinha cuidando do bebê sozinha. “Estou muito cansada. Há quatro meses não consigo dormir uma noite inteira”, ela disse, enquanto caminhávamos para o quintal. “E meu olho fica tremelicando, além disso”. Dunst soltou uma risadinha sinistra. “É, estou vivendo um momento muito especial”.

A atriz tem uma conexão direta com a audiência, que prova ser igualmente direta no caso de qualquer pessoa com quem ela esteja conversando na vida real. Ela fala com franqueza e em tom muito direto, como uma amiga que não hesitaria em lhe dizer a verdade caso houvesse algo de horrível a revelar.

Dunst estava há um ano e meio sem trabalhar, e falou com sinceridade dos atrativos de uma pausa como essa. “Parte de mim às vezes pensa que já estou trabalhando nisso há tempo demais. Quando é que vou poder parar e relaxar”?

Mas, por outro lado, não há muito tempo para relaxar se você tem que cuidar de duas crianças pequenas. Enquanto conversávamos, Ennis, 3, o filho mais velho de Dunst, entrou correndo no quintal. “Oi, Bubba”, disse a atriz, em tom doce.

“Oh, não! Você está zangado?” Ennis estava fazendo bico. Não queria ir à aula de natação, porque o professor o fez colocar a cabeça embaixo da água. Dunst olhou para mim, erguendo uma sobrancelha: “Entrevistas em casa são assim”.

Dunst já trabalhava como modelo, quando tinha a idade de Ennis. E aos oito anos, a atriz –filha de um executivo de serviços médicos e de uma comissária de bordo– apareceu em “A Fogueira das Vaidades”, e em um curta-metragem dirigido por Woody Allen. “Eu claramente tinha dentro de mim alguma coisa muito velha, diferente das crianças que costumam trabalhar em comerciais de TV”.

Aos 10 anos, aquela alma antiga a ajudou a conquistar o papel de uma vampira precoce em “Entrevista com o Vampiro”, mas depois disso, quando vivia no condomínio Oakwoods, em Los Angeles, povoado basicamente por atores mirins e seus pais obcecados pelas carreiras cinematográficas dos filhos, outra menininha a confrontou na piscina e disse que, de acordo com seu agente, ela seria a próxima Kirsten Dunst.

“Eu tive a sensatez de perceber que aquilo tudo era loucura”, disse Dunst. E ao longo dos anos seguintes, apesar de fazer trabalhos importantes como “Adoráveis Mulheres”, “Jumanji” e “Teenagers – As Apimentadas”, Dunst manteve a determinação de viver normalmente, ir à escola e ter amigos normais. “Para mim, sempre pareceu meio tosco ser muito fascinada por mim mesma”, ela disse. “Eu provavelmente sempre me mantive discreta na escola porque não queria que ninguém me hostilizasse”.

Mas nada em Hollywood é normal e, se você trabalha no cinema desde criança, a experiência termina por afetá-lo de maneiras que são difíceis de desentranhar. Na metade da casa dos 20 anos, depois de fazer três filmes da série “Homem-Aranha”, Dunst começou a se sentir oca.

Embora ela tivesse descoberto uma colaboradora importante em Coppola, que explorou o lado subversivo da loirinha ingênua de Dunst em “Maria Antonieta” e “As Virgens Suicidas”, as filmagens que realmente a satisfaziam foram se tornando cada vez mais raras. Atuar deixou de ser causa de alegria; em muitos casos, a vida dela havia se tornado uma empreitada técnica, com a qual Dunst não sentia qualquer conexão real.

Em 2008, depois de passar por uma reabilitação no Cirque Lodge para se tratar de depressão, Dunst chegou a algumas conclusões surpreendentes sobre a maneira pela qual seu trabalho como atriz infantil havia afetado sua personalidade adulta.

“Por muito tempo, eu não me zangava com pessoa alguma”, ela disse. “Preferia engolir muita coisa. Quando você está no set, o trabalho é performativo, é agradável. Mas chega uma hora em que você precisa se zangar, e acho que isso se acumula em cada pessoa. Não dá para sobreviver daquele jeito. Seu corpo impede que isso aconteça”.

Foi por isso, depois de chegar aos 30 anos e de trabalhar por alguns anos com a professora de teatro Greta Seacat, que Dunst encontrou uma nova e catártica conexão com seu trabalho: ela quer tomar todas as coisas difíceis e complicadas que as pessoas preferem ocultar e permitir que as vejamos em seu desempenho.

“Atuar deveria ser isso”, ela disse. “São esses os trabalhos que amo, os mais reveladores sobre os seres humanos e sobre as coisas difíceis que encaramos na vida”. Era o que ela queria mostrar na Rose de “The Power of the Dog”, tão oprimida por Phil que termina por não mais saber se tem algum valor no mundo. “Sinto que aquilo é como parte da jovem Kirsten que estou retomando”, disse Dunst. “Não é algo que eu realmente deseje reviver, mas, para o papel, é necessário”.

Dunst evitava a companhia de Cumberbatch no set da Nova Zelândia, e muitas vezes escolhia ficar em silêncio nas horas anteriores à filmagem. “Rose tem dificuldade para vocalizar”, ela disse. “Havia dias em que eu não conversava com pessoa alguma, para que a primeira coisa que dissesse parecesse nervosa, estranha, criasse a sensação de que sou um peixe fora da água”.

Mas Dunst não é a espécie de atriz que goste de levar as coisas com ela para casa, especialmente porque casa, para ela, incluía seu companheiro de elenco. “Jesse e eu tivemos sorte por fazermos o filme juntos”, ela disse.

“Tivemos a companhia um do outro ao longo da coisa toda, alguém para rir, alguém com quem reclamar”. E, para uma atriz que se preocupa tanto em registrar os momentos mais depressivos de seus personagens, é importante não pensar demais sobre coisas que deveriam ser simplesmente sentidas.

“É gostoso envelhecer porque você se incomoda menos com o que as pessoas acham de você”, ela disse. “Não sinto medo, em minha atuação, e isso é muito libertador. Foi algo que aconteceu depois de eu ter meu primeiro filho: a atitude passa a ser a de que agora é hora de colocar todas as fichas na mesa –por que não?”

Mas apesar disso, resta uma sensação de que as realizações recentes dela podem não ter atraído a atenção merecida. Coppola acredita nisso, e afirmou em um email que “ela é a melhor atriz, em sua faixa de idade (e, é claro, minha favorita!), mas não acho que receba o reconhecimento que merece”.

Isso pode mudar com “The Power of the Dog”, pelo qual Dunst é fortemente cotada para receber sua primeira indicação ao Oscar. Mas mesmo que isso não aconteça, a atriz disse que está por fim acomodada com seu lugar em Hollywood.

“Minha sensação é a de que trabalhei por muito tempo, e muito duro, e tudo bem se as pessoas não gostarem de mim”, ela disse. “Fiz muita coisa, e gosto dos filmes que fiz. É uma grande realização, em minha opinião, gostar daquilo em que você trabalhou. Não sei se outras pessoas se sentem assim com muita frequência”.

Horas depois da estreia de “The Power of the Dog” no Festival de Veneza, Dunst, Campion e Cumberbatch viajaram ao Colorado (EUA) para divulgar o filme no Festival de Cinema de Telluride. E depois ela voltou para casa, em Los Angeles, e para seu trabalho como mãe em período integral.

Um dia depois de seu retorno, voltamos a conversar por vídeo. “Bastou eu abrir a porta e a minha sensação foi a de que nada daquilo tinha acontecido”, ela disse. “Senti que eu estava de volta em casa, e à realidade de alguém vomitando em minha camisa”.

O Big Kahuna tinha dormido na cama dela, na noite anterior, e os chutes de amor que ele aplicou serviram como uma espécie de retorno à realidade. “Você vai de, uau, glamour, alguém está cuidando do meu cabelo e maquiagem para ‘ainda não escovei os dentes’”, ela disse. “De volta ao estilo de vida grunge”.

Enquanto conversávamos, Dunst estava tomando café, de uma caneca que trazia a imagem do personagem interpretado por Plemons em “Fargo”. O marido dela voltaria para casa na semana seguinte, mas a família toda depois disso se transferiria para o Texas, onde ele vai passar diversos meses gravando uma série para a HBO.

Dunst estava fazendo em voz alta as contas da matemática materna. “Temos de ir de carro ao aeroporto, porque temos duas cadeirinhas de bebê. Levamos uma delas no avião? Mandamos para o Texas?” Ela esfregou os olhos. “Essa logística toda das cadeirinhas está me estressando”.

Ela contemplou minha imagem no vídeo. “Onde está você agora?”, perguntou. Respondi que continuava na Itália, acompanhando o festival, e ela ficou encantada. Era um pequeno vislumbre, em uma telinha, do lugar onde ela tinha acabado de viver uma vertiginosa aventura. “Curta Veneza”, disse Dunst com um suspiro, seguido por um sorriso. “E tome um bellini por mim”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem