Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Série 'Ships of the Northern Fleet' NYT

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vanessa Armstrong
The New York Times

No começo de abril, o elenco e a equipe de “Ships of the Northern Fleet” estavam relembrando o passado, em uma convenção virtual. Catie Osborn, que interpretou Annie, uma das favoritas do público, lembrou do dia em que uma das estrelas convidadas, Judi Dench, quase foi eliminada por uma flecha laser.

“Lembro-me de que ela estava lá sentada, lendo alguma coisa, e ouvimos aquele silvo”, disse Osborn. “Ela nem tirou os olhos do texto. Ergueu a mão, apanhou a flecha no ar e voltou a ler ‘Rei Lear’”. Os colegas de elenco de Osborn assentiam silenciosamente enquanto ela contava a história, acrescentando recordações pessoais sobre aquele momento.

Você talvez também se lembre –mas o mais provável é que não. Por que “Ships of the Northern Fleet” não é real. É falsa. Fabricada. Uma série de TV inexistente.

Mas os fãs da série existem de verdade. Os “fleeters”, como são conhecidos, se congregam no Discord e TikTok para falar sobre suas “lembranças preferidas” quanto às aventuras das tripulações dos navios das Quatro Frotas.

Assuntos populares de discussão incluem os cog hogs, pequenos ouriços mecânicos muito mais bonitinhos que os porgs de “Star Wars”, e as majestosas baleias celestes, que voam nas alturas entre os dirigíveis dos piratas.

Os fãs debatem as virtudes dos capitães de diversos navios, entre eles o capitão Neil Barnabus (líder da frota True Winds e batizado em homenagem ao escritor de fantasia Neil Gaiman) e o capitão George Hellman (“interpretado” por Nathan Fillion, um astro permanente entre os devotos da ficção científica; embora tenha afirmado em um email que nunca ouviu falar da série, Fillion se declarou “completamente a favor” dela).

Como exatamente “Ships of the Northern Fleet” chegou a quase existir? Tudo começou, como tantas outras histórias dramáticas online, com uma mensagem ociosa na mídia social.

NASCE UMA SÉRIE

No começo de fevereiro, em um vídeo no TikTok, Tyler James Nicol, 36, que é roteirista de videogames, encorajou os espectadores a “participar de uma experiência alucinatória”, relatando suas lembranças e momentos preferidos de um programa “que não existiu e nunca existirá”, e que, de acordo com a narrativa imaginária proposta por ele, tinha sido cancelado muito antes da hora.

A falsa série sobre “piratas voadores”, em estilo “steampunk”, tinha por título “Ships of the Northern Fleet”, o nome de um romance que Nicol havia planejado escrever um dia. Ele jamais chegou a produzir um texto, mas tinha o título, uma conta no TikTok e a ideia de recorrer à internet para desenvolver tramas e toda uma mitologia para a história.

A ideia decolou rapidamente. Nicol, Osborn e outras quatro pessoas —Patrick Loller, Erik Tait, Gary Hampton e Logan South— se conectaram no TikTok e começaram a fazer sessões coletivas de streaming no Twitch, nas quais improvisavam a criação de personagens e respondiam a perguntas que fãs apresentavam via chat sobre o “trabalho” deles na série.

Os entusiastas se reuniram e criaram um subreddit, um servidor no Discord e uma wiki com mais de 300 verbetes. Também produziram imagens, canções e um jogo de tabuleiro baseado na história. Há produtos piratas sobre a falsa série disponíveis também, embora os fãs possam comprar produtos “reais” de Nicol, que doa todo o dinheiro faturado com isso ao Trevor Project.

O timing parece ter sido crucial para o sucesso de “Ships of the Northern Fleet”. South, que interpreta o capitão Vlad, um vampiro necronauta, na série, disse que “acredito que a pandemia tenha certamente dado mais tempo ocioso para as pessoas, e elas o aproveitaram para procurar conteúdo em seus celulares”. Para ele, o projeto todo resultou de “as pessoas quererem alguma coisa que ocupasse seu tempo, preenchesse um vazio e trouxesse boas sensações”.

A série hipotética também criou um refúgio para pessoas que se viam como traídas pelos criadores de outras franquias muito amadas: fãs de "Harry Potter" e de "Buffy, a Caça-Vampiros", parecem ter redobrado sua admiração por “Ships of the Northern Fleet”, depois de revelações recentes sobre os criadores dos mundos fictícios que amavam.

É um problema que não poderia abalar uma série imaginária com número infinito de autores –pelo menos não da mesma maneira. “Você podia estar certo de que haveria um personagem que o representasse perfeitamente; não havia a necessidade de se preocupar com a possibilidade de descobrir, dali a um ano, que a pessoa que criou aquele personagem não o reconhece como ser humano”, disse Nicol, em uma referência oblíqua a J.K. Rowling, a autora de “Harry Potter” e suas opiniões sobre pessoas transgênero.

Drea Letamendi, psicóloga clínica na Universidade da Califórnia em Los Angeles e apresentadora de um podcast sobre cultura pop chamado “The Arkham Sessions”, concorda em que o crescimento da base de fãs de “Ships of the Northern Fleet” pode ser uma resposta ao desconforto surgido em diversas comunidades de fãs. “Fomos feridos pelas pessoas que criavam histórias para nós, histórias ostensivamente inclusivas, com as quais crescemos e que nos ajudaram a formar nossas identidades”, disse Letamendi.

A proposta da série imaginária é inclusiva por definição. Quase todos os fãs podem assumir o crédito por alguma porção do projeto criativo, e o grupo garantiu que os capitães dos navios reflitam as identidades diversificadas da base de fãs.

“O espaço foi cultivado inicialmente para ser acolhedor para a comunidade LGBTQ e um espaço confortável para as pessoas não brancas”, disse Oleander Kiewel, fã de “Ships of the Northern Fleet” que ajudou a montar a wiki e criou a personagem capitã Drusilla Spadeworthe, que é pansexual.

“É um espaço realmente inclusivo e nenhuma pessoa isolada pode ditar como as coisas fluem, o que acho maravilhoso para a comunidade. É o grupo de fãs menos tóxico de que já fui parte”.

SATISFAZENDO UMA CURIOSIDADE

Há a questão de as pessoas “lembrarem” detalhes da série de forma diferente. Em geral, essas discrepâncias de memória são aceitas. “Tempo é uma ideia muito flexível”, escreveu Nicol, como uma das regras do grupo no Discord. “Lembro-me de assistir a um final de temporada quando era bem moço. Também adorei o episódio mais recente, ontem à noite. As duas lembranças são acuradas”.

Entre os fãs, algumas pessoas se referem a esse fenômeno como “a variança”, na qual uma combinação da teoria de cordas sobre multiversos e do loop temporal de Möbius é usada para justificar as recordações imensamente distintas dos fãs, como explica a wiki.

Letamendi acredita que o fato de que qualquer pessoa esteja autorizada a criar elementos no universo de “Ships of the Northern Fleet” é parte importante de seu atrativo. “Elas já não se sentem obscurecidas por serem marginalizadas ou ‘minoritizadas’ em sua experiência, e podem até contribuir para aquilo que importa”, ela disse. “Acho que isso tem benefícios psicológicos individuais, mas também um benefício coletivo para a cultura que cerca esse fenômeno”.

Justin Mousseau, 30, fã ardoroso de “Ships of the Northern Fleet”, concorda. “O atrativo, para muitos dos fãs, é o senso de comunidade, a oportunidade de se unir a outras pessoas para conversar sobre coisas que amamos”, ele disse.

“E acho que a série satisfaz uma necessidade importante nesse sentido, e permite não só criar arte como fã para uma comunidade ou grupo de discussão sobre uma série de TV, mas determinar a direção e forma que a série toma”.

Essa ideia de criação distribuída é algo que torna o processo único. “É essa a diferença real entre a série e outras comunidades de fãs”, disse Letamendi. “Os fãs mesmos é que interpretam e inserem, e criam a história com as pessoas que estão no poder.

E essa parte do processo pode ser incrivelmente libertadora, pode concretizar os desejos dos fãs de serem parte da narrativa. Eles têm mais controle, mais poder e sentem que podem ver a si mesmos na história”.

“Não importa se você é membro do elenco canônico, o que quer que isso signifique, ou membro oficial da equipe de produção”, disse Tait, mágico profissional que é parte da narrativa construída, com a função de supervisor de efeitos especiais.

“Não existe maneira errada de participar disso. É material divertido de ler e é divertido ver essas coisas acontecendo, mas até mesmo fazer uma pergunta significa participar, e a participação torna o processo mais divertido para todos”.

A comunidade pratica o que Letamendi define como “controle de acesso pró-social”, ou seja, os fãs da série redirecionam aqueles que relembrem aspectos problemáticos da série.

“Às vezes, Tyler precisava intervir e dizer ao pessoal que estávamos trocando lembranças sobre uma série de TV, e talvez devêssemos recordar as partes boas”, disse Loller, membro do elenco que “interpretava” Glurp, um personagem dotado de tentáculos cuja frase de efeito - “swiggity swaggity, let’s blow up gravity!” –enfeita camisetas oficiais da série.

“No começo, algumas pessoas queriam tratar a história como ‘Game of Thrones’”, disse Loller. “Inicialmente as pessoas diziam que amavam a série, e depois começaram a levá-la em uma direção estranha, e alguém teve de dizer que aquela era uma série problemática, e racista. E a nossa não precisava ser. É a beleza do que fazemos”.

PARA ONDE, AGORA?

O que mais os fãs podem criar sobre uma série que não existe? A resposta, como tudo mais em “Ships of the Northern Fleet”, depende exclusivamente deles. Uma das poucas diretrizes que Nicol estabeleceu no Discord foi a de que a história da série jamais poderia ser concluída”.

“Sempre haverá lacunas. Sempre alguma coisa inacabada”, ele escreveu. “Como se, quando chega a hora de escrever, houvesse espaço para que alguém mais acrescentasse alguma coisa à história, como se história alguma seja só minha”.

O elenco central –cujos integrantes em geral nem se conheciam antes que o projeto os unisse, e cujos integrantes não vivem em uma mesma área– tem sonhos compartilhados quanto à série.

“Idealmente, quando as pessoas puderem voltar a viajar, se pudermos fazer uma leitura e uma entrevista com a presença de todos, e do público, essa seria a principal meta para mim”, disse Hampton, músico e diretor assistente na Netflix, que “interpreta” o jovem Meadow na série.

O restante do elenco ecoou o desejo de Hampton de uma reunião física. E embora a maioria deles concordasse em que ninguém vai produzir uma série chamada “Ships of the Northern Fleet” sobre piratas voadores, pelo menos não em formato live action, eles também admitiram que a série em outros formatos seria uma ideia intrigante. “Eu às vezes sonho febrilmente com filmar um falso documentário, sobre essa viagem e sobre nosso encontro”, disse Hampton.

“Meu objetivo mais cobiçado seria ir a uma convenção no futuro e ver alguém vestido como um personagem da série ou usando uma dessas camisetas”, disse Nicol, apontando para uma camiseta de “Ships of the Northern Fleet”. Ele imagina que abordaria o fã e, mergulhando naquele “estranho sub-meta-texto nerd”, comentaria: “Ships of the Northern Fleet’! Ótima série! Amo essa série!”

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem