Conheça Bunny, a cadelinha que se comunica por sons e faz sucesso no TikTok
Dona do animal, Alexis Devine afirma que ela é capaz de dizer 92 palavras
Dona do animal, Alexis Devine afirma que ela é capaz de dizer 92 palavras
Alexis Devine diz que sabia desde o começo que Bunny, sua cadelinha “sheepadoodle” [meio sheepdog, meio poodle] estava destinada a falar. Devine, 40, artista e designer de joias em Tacoma, Washington, havia lido tudo que encontrou sobre cognição, comunicação e treinamento de cães nos meses que antecederam a chegada de Bunny.
Sua pesquisa a levou à página de Instagram de uma patologista da fala chamada Christina Hunger, 27, que estava documentando o desenvolvimento do vocabulário em inglês de sua cadela, Stella. Ela tinha um brinquedo com botões circulares, cada um dos quais fazia soar uma palavra quando premido.
Apertando os botões com as patas e fazendo-os formar sentenças frouxamente organizadas, Stella estava supostamente se comunicando em inglês.
Hunger trabalha há alguns anos no desenvolvimento de tecnologia de assistência —especialmente, aparelhos de comunicação alternativa e aumentativa (conhecidos como AAC, em inglês) para ajudar crianças desprovidas de fala a adquirir vocabulário e a se comunicarem sem falar.
Os patologistas da fala costumavam restringir o vocabulário nos aparelhos AAC para crianças porque o conceito era o de que um número excessivo de palavras as intimidaria. Mas a ideia dominante entre os especialistas em comunicação está lentamente mudando em favor de permitir que os usuários dos aparelhos demonstrem as capacidades ao lhes dar o maior número possível de palavras com as quais brincar.
O raciocínio de Hunger era o de que ninguém presumiria que um bebê é incapaz de falar se ele chegasse aos 12 meses sem pronunciar a primeira palavra. Assim, por que essa lógica deveria ser aplicada àqueles que não são capazes de falar —quer se trate de crianças que sofram de catatonia ou de uma criatura desprovida dos órgãos vocais necessários, como um cachorro?
Hunger começou a fazer experiências. A maioria dos aparelhos AAC era caro demais ou inadequados para uso canino e, por isso, ela escolheu a opção mais barata que encontrou na internet: um pacote de quatro campainhas com botões capazes de acionar respostas pré-gravadas.
A caixa chegou à casa em San Diego uma semana depois de Stella. Hunger decidiu que um botão que fazia soar o termo “sair” era o melhor ponto de partida para treinar um cachorro quanto a passeios e comportamento dentro de casa.
Em poucas semanas, Stella aprendeu a apertar o botão quando queria sair. Devine leu sobre Stella no blog de Hunger. Quando Bunny chegou, em outubro de 2019, o primeiro botão “sair” já estava instalado ao lado da porta.
Os cães aprenderam muitos truques nos 20 mil anos desde que foram domesticados inicialmente. A maioria é capaz de responder a comandos básicos como “sente” e “quieto”. Eles se lembram de palavras como “petisco” e “passeio”. Alguns demonstraram uma capacidade quase humana de identificar os nomes de novos objetos e armazená-los para futuro uso.
“É provável que a domesticação tenha afetado as posições dos cérebros dos cachorros para que eles possam interagir melhor com os humanos e conviver socialmente com eles”, diz Claudia Fugazza, pesquisadora do departamento de etologia (comportamento animal) na Universidade Eotvos Lorand, em Budapeste, Hungria. “Eles provavelmente se predispõem mais a interagir com humanos como parceiros sociais.”
Tudo isso serve para dizer que os cachorros são capazes de seguir uma série de indicações sociais humanas. Mas excetuados os filmes de cinema e TV, donos de cachorros raramente afirmaram que eles são capazes de falar.
“Bunny agora é capaz de dizer 92 palavras”, diz Devine em uma conversa via Zoom, em abril. A cadela dela estava visível na câmera, deitada sobre um tapete felpudo aos pés dela. Bunny tem quase dois anos agora e sua aquisição de linguagem rivalizaria com a de uma criança da mesma idade. (Uma criança de dois anos de idade usa pelo menos 50 palavras com facilidade.)
De acordo com Devine, Bunny é capaz de usar os botões de seu dispositivo de comunicação para formar sentenças de quatro palavras. Ela sabe fazer perguntas. Também sabe mandar pessoas calarem a boca e o faz frequentemente –na formulação de seu aparelho, “sossegue”. “Por muito tempo, Bunny só falava de cocô”, diz Devine. “Mas bebês fazem a mesma coisa, não?”
Com 6,6 milhões de seguidores no TikTok e 818 mil no Instagram, Bunny se tornou o símbolo do movimento do AAC canino criado por Hunger. “Alexis é ótima na mídia social”, diz Hunger, que tem 800 mil seguidores no Instagram, a maioria dos quais parece estar lá para ver conteúdo associado a Stella.
A maioria dos cachorros (e de seus donos) que se arriscam nessa área —e são muitos: pesquise o hashtag #hungerforwords— não tem presença comparável à de Bunny na mídia social. Pessoas frequentemente a reconhecem na rua quando ela é levada para passear.
“Certa vez, um carro fez um retorno no meio do trânsito e depois parou no meio da rua; os passageiros abriram as janelas para dizer alô para ela”, afirma Devine.
No começo de 2020, seis meses depois de Bunny aprender a usar o botão “sair”, Devine foi contatada por Leo Trottier, desenvolvedor de produtos na indústria de produtos para animais de estimação. Ele queria trabalhar com ela.
Em 2016, Trottier, que tem um mestrado em ciência cognitiva e está fazendo seu doutorado, lançou o CleverPet, o primeiro console de videogames para cachorros. Mas depois de fracassar em uma tentativa de arrecadar dinheiro para produção no Kickstarter, ele abandonou o projeto.
Três anos mais tarde, quando ele descobriu o trabalho de Hunger, viu uma oportunidade de colaboração. Hunger e Devine estavam usando botões com mensagens pré-gravadas simples que encontraram na Amazon, mas Trottier desenvolveu o FluentPet, um aparelho AAC concebido para cachorros e estava procurando por interessados em participar do teste beta.
Hunger tinha assinado um contrato com a editora HarperCollins para um livro, na época do lançamento do kit de teste beta, e recusou o convite de Trottier para colaborar. Ele procurou Federico Rossano, seu antigo professor na Universidade de San Diego, e pediu ajuda para —nas palavras de Rossano— "colocar mais ciência" no produto.
Rossano, que pesquisa sobre cognição e já trabalhou com diversas espécies, encarou a ideia com ceticismo, inicialmente. Mas terminou por considerar a proposta como uma oportunidade de estudar de maneira sistemática e rigorosa a capacidade dos cachorros para funções semelhantes à linguagem, e com o potencial de obter resultados de um pool de participantes diferente de qualquer grupo a que ele tivesse tido acesso anteriormente.
Ao mesmo tempo, Devine, cujos negócios no ramo de joias se desaceleraram muito durante a pandemia, encontrou um incentivo adicional ao se tornar influenciadora afiliada do produto, o que queria dizer que ela receberia uma comissão de 8% sobre cada venda do FluentPet realizada por meio de um link em sua página de Instagram.
No final de 2019, Trottier e Rossano criaram o They Can Talk, um projeto de pesquisa e fórum online para os participantes. “Inicialmente achávamos que teríamos só alguns participantes da região de San Francisco e San Diego”, disse Rossano.
Mas depois do lockdowns do começo de 2020, e à medida que crescia a popularidade do TikTok, milhares de pessoas presas em casa e entediadas começaram a imaginar se seus bichos de estimação seriam capazes de falar, como Bunny.
No momento, o estudo conta com mais de 2.500 participantes. Não é preciso comprar o FluentPet para participar, mas existe um incentivo a isso no site do projeto. Os preços variam de US$ 29,95 por um kit de teste a US$ 195,95 por um conjunto de 32 botões.
“Temos um acordo de compartilhamento de dados”, diz Rossano. “Eu sou o diretor científico do projeto e as análises e constatações serão reportadas em publicações científicas."
Para evitar conflitos de interesse, Rossano não é pago por seu trabalho no estudo. Idealmente, ele preferiria que a pesquisa operasse da maneira mais independente possível do FluentPet, mas um estudo dessa dimensão tornou necessário o patrocínio da empresa.
“Sou cientista e até onde sei meu trabalho é avaliar se esses aparelhos estão revelando capacidades cognitivas novas e inesperadas ou se tudo pode ser explicado com base em mecanismos simples de aprendizado comuns a diversas espécies de animais”, afirma Rossano.
Por pelo 200 anos, pesquisadores vêm reportando diversos exemplos de animais não humanos que demonstraram capacidades notáveis e semelhantes à linguagem. Um exemplo disso, que teve presença importante no campo dos estudos cognitivos comparativos, é o caso de um cavalo chamado Clever Hans.
Hans parecia capaz de responder com precisão a cálculos aritméticos simples. Por exemplo, se alguém perguntava a ele “quanto é dois vezes dois”, ele batia com o casco no chão quatro vezes. Mas quando o psicólogo Oskar Pfungst avaliou o cavalo, em 1907, concluiu que ele simplesmente respondia a indicações humanas e não demonstrava que era capaz de compreender a fala humana.
O “Efeito Clever Hans” levou cientistas, desde então, a desenvolver métodos que removem a presença e influência humana dos estudos sobre cognição animal para evitar falsos positivos. No final da década de 1950, primatas, especialmente os chimpanzés, se tornaram o foco dos estudos sobre as capacidades linguísticas de animais não humanos.
Determinados a ensinar linguagem falada a chimpanzés jovens, os cientistas rapidamente encontraram um sério obstáculo: os animais não falantes não dispõem do aparato vocal para abrir a boca e dizer “ei, você”.
Na década que se seguiu, os cientistas que pesquisam cognição comparativa começaram a se inspirar em estudos sobre deficiências, transferindo sua atenção a linguagem de sinais manuais como a American Sign Language (ASL).
A ideia de que uma linguagem transmitida visualmente continha o mesmo potencial de expressão que a fala ainda era relativamente nova quando chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos começaram a demonstrar a capacidade de aprender e a usar gestos baseados na ASL.
Na década de 1990, a ideia de que o desenvolvimento de um cachorro poderia espelhar o de uma criança pequena começou a ganhar impulso, mas a pesquisa sobre comunicação canina continua a ser muito rudimentar.
“A neurociência canina continua a ser um campo relativamente novo”, diz Fugazza, a pesquisadora de Budapeste. Em 2017, Gregory Berns, professor de neuroeconomia na Universidade Emory, liderou um programa de treinamento que ensinava cachorros a entrar em uma máquina de ressonância magnética sem sedativos e sem serem restringidos fisicamente.
Com os cachorros dentro da máquina, os donos diziam os nomes de objetos e brinquedos que os cercavam e algumas palavras sem sentido. As imagens magnéticas obtidas mostravam que os cérebros dos cachorros eram capazes de discriminar rapidamente entre palavras que eles conheciam, palavras desconhecidas e termos sem significado, mas que os cachorros não pareciam capazes de distinguir entre palavras que se diferenciam por apenas um fonema (por exemplo “não” e “pão”).
Diferentemente dos chimpanzés, os cachorros foram submetidos a um processo de evolução artificial como resultado da domesticação. Nas duas últimas décadas, em especial, pesquisas demonstraram que cachorros têm uma compreensão nuançada e social das indicações sociais humanas.
Isso pode ser atribuído à “hipótese da domesticação” —a ideia de que o comportamento social dos cachorros foi moldado para satisfazer as sensibilidades humanas.
“Estamos realmente interessados em uma descoberta recente que mostra que existem certos movimentos faciais nos cachorros que os seres humanos consideram muito atraentes e isso levou os cachorros a evoluírem músculos faciais que os lobos não têm”, diz Juliane Kaminski, professora de psicologia comparativa na Universidade de Portsmouth.
“Estamos falando basicamente dos olhinhos pidões. Existe uma expressão que os cachorros criam ao erguer as sobrancelhas que se assemelha à cara de tristeza nos seres humanos e estes parecem considerar essa expressão excepcionalmente atraente quando os cachorros a exibem."
Rossano afirma que em lugar de perguntar se os cachorros são capazes de compreender os seres humanos, “podemos perguntar se eles são capazes de aprender a se comunicar com os humanos usando sinais humanos”.
Ainda assim, Judith Schwarzburg-Benz, filósofa e pesquisadora sênior do Clever Dog Lab, em Viena, imagina o quanto podemos realmente aprender sobre comunicação canina observando-a pela lente humana. “O que obtemos é um quadro muito reduzido”, ela diz. "Acho que só conseguimos vislumbres da mente e do processo de aprendizado, sobre questões muito específicas."
De fato, em que ponto seria possível afirmar satisfatoriamente que Bunny é capaz de falar? Bunny teria de satisfazer a todos os itens de uma lista de verificação linguística ou apenas a alguns? E de que maneira isso seria determinado?
“Se o AAC de um cachorro será tão grande quanto imagino que venha a ser ou possa ser, serão precisas muitas pessoas, trabalhando em arenas diferentes, de ângulos diferentes, para resolver a questão por todos os lados”, diz Hunger.
Em 4 de maio, a HarperCollins lançou o livro de Sra. Hunger, “How Stella Learned to Talk” (que está na lista de best-sellers do jornal The New York Times). Os botões criados por Hunger também chegaram ao mercado. Eles estão sendo produzidos em larga escala e estão disponíveis online e nas grandes lojas. (Uma caixa com quatro custa US$ 28,40.) "Creio que isso tenha o potencial de mudar para sempre nosso relacionamento com os cachorros", diz Hunger.
Para Devine, a conexão com Bunny é uma conexão pessoal. Ela disse que recentemente ouviu Bunny pressionando o botão “ai” em sua placa de comunicação. Alguns minutos se passaram e aí ela apertou “estranho” e “pata”, e apontou com a pata na direção da dona.
“Eu apalpei entre suas patas e encontrei um espinho”, diz Devine. “Sempre que ela escolhe se comunicar comigo de um jeito que não é o seu natural a sensação é realmente especial. Se porque confia em mim ela está se esforçando para me fazer entender, e quer se engajar, isso é prova de que ela me ama."
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.
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