Bichos

Animais com traços de ambos os sexos não são tão raros quanto você talvez imagine

Fato explicaria maior incidência de doenças em homens ou mulheres

No canto superior esquerdo, uma borboleta morfo azul masculina; no meio superior, uma fêmea
No canto superior esquerdo, uma borboleta morfo azul macho; no meio superior, uma fêmea ORG XMIT: XNYT74 - Nipam H. Patel via The New York Times
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Karen Weintraub

Todos os colecionadores de borboletas sérios se lembram de seu primeiro ginandromorfo: uma borboleta com padrões e cores distintamente masculinos em uma asa e femininos na outra.

Ver um desses espécimes causa admiração e curiosidade. Para o biólogo Nipam Patel, a experiência ofereceu uma possível resposta a uma questão que ele vinha ponderando há anos: durante o desenvolvimento embrionário e larval, como as células sabem onde parar e aonde ir?

Ele estava certo de que os delicados contornos negros entre as regiões masculina e feminina que aparecem em uma das asas - mas não na outra - identificavam uma faceta crucial no desenvolvimento do animal.

"Ocorreu-me imediatamente que isso dizia algo interessante sobre a formação da asa", disse Patel, biólogo que hoje comanda o Laboratório de Biologia Marinha, um instituto de pesquisa em Woods Hole, Massachusetts, afiliado à Universidade de Chicago.

Os padrões nas asas dos ginandromorfos mostram que o corpo usa centrais de sinalização para controlar aonde as células vão durante o desenvolvimento e que tecidos elas se tornam, em criaturas tão diversas quanto as borboletas e os seres humanos, diz o biólogo.

As borboletas ginandromorfas e outras criaturas meio fêmeas, meio machos, especialmente pássaros, fascinam cientistas e amadores há séculos. A mais recente sensação foi um cardeal meio vermelho, meio marrom que se tornou visitante regular no jardim de Shirley e Jeffrey Caldwell, em Erie, Pensilvânia. 

Ainda que para confirmar que se trata de um ginandromorfo fosse necessário testar o pássaro, a divisão de cores que ele ostenta sugere fortemente que o seja, de acordo com os cientistas.

Criaturas com traços de ambos os sexos não são tão incomuns quanto pode parecer quando a descoberta de uma delas ganha circulação viral, como foi o caso do cardeal. E esses traços vão além dos pássaros e borboletas e estão presentes em outros insetos e em alguns crustáceos, como lagostas e caranguejos.

Os cientistas dizem que esses casos de traços sexuais duplos em animais e insetos podem oferecer indicações sobre os motivos para que algumas doenças humanas tenham incidência maior sobre um dos sexos do que sobre o outro.

Os pesquisadores imaginavam ter deslindado a genética dos pássaros e abelhas, mas os ginandromorfos sugerem que há mais a aprender, disse Jennifer Graves Marshall, professora emérita da Universidade La Trobe, na Austrália.

Os mamíferos tem cromossomos X e Y, os insetos e pássaros têm cromossomos Z e W, e alguns répteis podem mudar de sexo com base na temperatura, ou em uma combinação de temperatura e cromossomos sexuais, disse Marshall.

A crença era de que o sexo de um pássaro fosse determinado por uma proteína produzida pelo gene DMRTI, que chegaria a todas as células do pássaro pela corrente sanguínea. Mas para que os dois lados do pássaro compartilhem da mesma corrente sanguínea mas não do mesmo sexo, é preciso haver alguma coisa mais na história.

Os hormônios tampouco podem ser os únicos determinantes do sexo, mas é provável que desempenhem um papel quanto a isso, disse Arthur Arnold, professor e pesquisador emérito da Universidade da Califórnia em Los Angeles. 

Em um estudo publicado em 2003 pela revista acadêmica Pnas, Arnold demonstrou que, em tentilhões zebrados ginandromorfos, as células do cérebro no lado feminino eram mais masculinas do que células comparáveis em uma fêmea típica.

Galinha com ginandromorfismo bilateral
Galinha com ginandromorfismo bilateral - Michael Clinton/Roslin Institute at the University of Edinburgh via The New York Times

A maneira pela os ginandromorfos nascem continua a ser um mistério. Para os pássaros, a explicação mais provável é que a fêmea produz um óvulo incomum, com dois núcleos, um deles com cromossomo Z e outro com cromossomo W, e que cada um desses núcleos é fertilizado por um espermatozoide Z, o que faz com que algumas das células sejam ZW e outras sejam ZZ em um mesmo espécime, disse Arnold.

"Ainda que isso aconteça regularmente, é raro", ele acrescentou. Editar genes é complicado, em pássaros, e por isso não foi possível induzir esse fenômeno experimentalmente, até agora, o que faz com que não seja muito bem compreendido, disse Arnold.

É muito improvável que o mesmo processo ocorra em mamíferos, ele disse. As fêmeas mamíferas naturalmente têm dois cromossomos do mesmo sexo, e no momento em que óvulo e espermatozoide mamíferos se fundem, "mudanças dramáticas impedem o ingresso de um segundo espermatozoide".

Os ginandromorfos ocorrem naturalmente, e costumam resultar de um erro genético aleatório, disse Patel. O fenômeno pode ser hereditário - em algumas moscas e mariposas, os cromossomos sexuais instáveis são transmitidos às gerações seguintes, ele disse. Mas também pode ser que a divisão sexual incomum seja causada por estresse.

É impossível rastrear toda uma população para compreender que porcentagem dela têm cromossomos sexuais incomuns, disse Patel. No laboratório, os cientistas usam radiação para criar moscas ginandromorfas, ele disse, mas é difícil distinguir as causas potenciais - entre as quais dano ambiental - em uma população que viva na natureza.

Ainda não se sabe por que as células de sexos opostos terminam de lados opostos dos ginandromorfos, disse Arnold. "Não tenho uma boa explicação", ele disse.

Ainda que muitos dos pássaros estudados fossem cerca de 50% machos de um lado e cerca de 50% fêmeas do outro, um estudo de 2010 sobre galinhas mostrou uma divisão menos regular entre as células.

Os animais podem se desenvolver como mosaicos, com algumas células geneticamente diferentes de outras. Algumas das borboletas de Patel, por exemplo, mostram colorações e padrões masculinos em uma parte de uma asa, em lugar de em todo um lado do corpo.

Uma borboleta macho, um mosaico ginandromorfo e uma fêmea
Uma borboleta macho, um mosaico ginandromorfo e uma fêmea - Nipam H. Patel via The New York Times

Arnold disse que suas pesquisas com genes sexuais têm implicações para o tratamento de diversas doenças humanas que parecem variar entre os sexos. Rhonda Voskuhl, que colabora com ele na Universidade da Califórnia em Los Angeles, descobriu, por exemplo, que na esclerose múltipla uma rata geneticamente fêmea com dois cromossomos X se sai pior do que um rato macho com cromossomos X e Y, ainda que os dois tenham os mesmos hormônios. 

Compreender por que o espécime fêmea se sai pior ajudaria a explicar e tratar a esclerose múltipla humana, que também mostra diferença de incidência entre os gêneros, com três vezes mais casos entre as mulheres do que entre os homens.

Obesidade, síndrome metabólica, doenças do sistema imunológico, Mal de Alzheimer e até mesmo o processo do envelhecimento diferem entre os sexos, apontou Arnold. 

Vinte anos atrás, ele disse, os cientistas não acreditavam que os cromossomos sexuais desempenhassem papéis nas diferentes incidências dessas doenças entre os sexos.

"Mas agora sabemos que isso faz diferença em ratos de laboratório, e por isso podemos perguntar onde é que esse fator faz diferença nos seres humanos", ele afirmou.

Uma compreensão melhor do papel do sexo em uma dada doença poderia um dia permitir tratamentos melhores, ele disse. 

"É esse tipo de esperança que temos em mente - que as diferenças entre os sexos não só sejam importantes para compreender as doenças das mulheres e dos homens, mas também para desenvolver uma compreensão mais fundamental dos processos das doenças, para que se possa manipulá-los".

Na maioria dos casos, perder um cromossomo ou ter um cromossomo a mais é fatal, disse Jeannie Lee, geneticista e especialista em cromossomo X na escola de medicina da Universidade Harvard e no Massachusetts General Hospital.

A maioria das pessoas porta 46 cromossomos, com 23 herdados de cada genitor. Alguns poucos cromossomos podem vir com cópia adicional - entre os quais o 13, 18 e 21, causando o que comumente denominamos como Síndrome de Down. Perder qualquer cromossomo que não um segundo cromossomo sexual é sempre fatal para um feto.

Mas o cromossomo do sexo é o único que permite que pessoas sobrevivam com apenas uma cópia, disse Graves. "Meninas com apenas um X e nenhum Y sofrem poucas anomalias, porque o segundo X é em geral inativo, de qualquer forma. Afinal, os homens só têm um Y", ela disse.

Pessoas com um número anômalo de cromossomos sexuais, como os portadores da Síndrome de Turner, apresentam uma gama variável de problemas - de nenhum efeito a infertilidade, doenças cardíacas e comprometimento cognitivo. Cerca de uma em cada 2,5 mil meninas nasce com Síndrome de Turner.

Também é possível que pessoas sejam intersexuais, nascidas com anatomia reprodutiva ou sexual que não atende às descrições típicas de fêmea ou macho, o que pode envolver os cromossomos sexuais, mas não o faz necessariamente, de acordo com a Intersex Society of North America, uma organização ativista.

Não está claro de que mecanismos o corpo dispõe para garantir que a maioria dos homens receba apenas um cromossomo Y e que a maioria das mulheres receba dois cromossomos X, disse Karissa Sanbonmatsu, bióloga estrutural e diretora de projeto de pesquisa no Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México. 

Nas fêmeas típicas, um cromossomo X em geral - mas nem sempre - fica desligado, ela disse, e algumas pesquisas sugerem que existe um mecanismo que conta quantos cromossomos X estão presentes e em geral desativa todos eles exceto um.

A interação entre genética e hormônios é complicada, disse a pesquisadora. "A genética produz hormônios, mas os hormônios podem reprogramar o DNA, mais tarde", ela disse, o que pode explicar porque existe incompatibilidade entre hormônios sexuais e cromossomos sexuais, em algumas pessoas.

"É uma área bem especulativa", disse Sanbonmatsu, acrescentando que "é difícil obter financiamento para esse tipo de pesquisa".

As pessoas com Síndrome de Insensibilidade Andrógena, por exemplo, nascem com cromossomos XY mas se desenvolvem como mulheres, porque suas células não são capazes de processar hormônios masculinos. "Assim, é como se a testosterona não existisse", ela disse. Os portadores da síndrome são estéreis.

Quanto mais a ciência aprende sobre sexo, "mais anomalias encontramos", disse Alan Dreger, historiador da sexualidade.

"A natureza lida com a conformidade o tempo todo, de modos brutais, de modos amorosos, e de todos os demais modos", ele disse. "Ela não acompanha a fantasia humana de que todos devem ser normais. E os seres humanos tampouco seguem essa ideia ridícula".

The New York Times

Tradução de Paulo Migliacci

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