Música

Em biografia, Flea narra infância de drogas até a criação do Red Hot Chili Peppers

Baixista ainda revela altos e baixos de amizade com Anthony Kiedis

Alex Pappademas

Numa quinta-feira, pela metade de outubro, Flea estava sentado em uma cadeira que ele havia arrastado para o meio da gramado e contemplava o lago verde em seu quintal. O sol do final da manhã reluzia em seu crânio recoberto de penugem grisalha e nos braços cobertos de tatuagens que apareciam por sob sua camiseta Vin Scully.

Seus pés descalços e desgastados pisavam a grama a apenas alguns centímetros de distância de um fóssil pulverizado que, no passado, parece ter sido um cocô de cachorro. Foi então que ele começou a tentar responder o irrespondível.

“Por exemplo, seu coração, seu espírito, a pessoa que você é –isso parece não importar em que contexto você se encontre?”, ele questionou. “Ou é formado de maneira imensurável e irrecuperável por suas circunstâncias? Eu não sei”.

Ele acaba de escrever seu primeiro livro, uma autobiografia chamada “Acid for the Children”, que sai no dia 5 de novembro. No livro, ele conta como decidiu se tornar baixista, como aprendeu a usar o dedão para “slaps” e a tocar com estilo percussivo, e como formou uma banda com três amigos do segundo grau: Hillel Slovak, Jack Irons e Anthony Kiedis. Essa banda se tornou o Red Hot Chili Peppers e perseverou sem camisa por três décadas selvagens, sobrevivendo à perda de membros que caíram vítimas de vícios e à perda de força comercial pelo rock alternativo.

Em março deste ano, a banda tocou na Grande Pirâmide de Gizé, como Frank Sinatra e o Grateful Dead antes dela. Em setembro e outubro, tocou no Rock in Rio, no Brasil, em um evento associado a um grande prêmio de Fórmula 1 em Cingapura, e em um festival realizado em uma ilha artificial em Abu Dhabi.

Eles chegaram ao ponto em que as autobiografias tradicionais do rock tendem a fechar as cortinas do lado de lá dos anos de furacão, depois de todos os Grammys e de todas as drogas, e todos eles estão sóbrios, sólidos e ocupados com shows sempre lotados no circuito mundial dos grandes espetáculos.

O livro de Flea não é um livro desse tipo. Foi escrito com a mesma energia lírica e atitude entre sagrada e insana que o autor confere a todas as suas atividades públicas, e a prosa sincera e excêntrica reflete a evolução de Flea de um maluco contumaz de Hollywood a um adulto ponderado e espiritualmente antenado. 

Os altos e baixos iniciais de sua amizade com Kiedis –o vocalista do Red Hot Chili Peppers–,  e esse relacionamento mais longo e aparentemente mais complicado em termos emocionais  da vida não familiar de Flea, são retratados de maneira terna, mas impiedosa.

Mas só na página 375 de um livro de 383 páginas a banda que se tornaria o Red Hot Chili Peppers faz seu primeiro show: em 1983, para 27 pessoas, no Grandia Room de Hollywood, sob o nome Tony Flow and the Miraculously Majestic Masters of Mayhem. A apresentação deles na época consistia de uma canção original e de um número de dança coreografado ao som de “Pack Jam (Look Out for the OVC)”, do Jonzun Crew.

E a cortina se fecha ali, antes da ascensão e queda e ascensão do Peppers –para não mencionar as aventuras de Flea com casamentos e a criação de filhos, boa parte de sua carreira cinematográfica, os detalhes de seu trabalho filantrópico como fundador do Silverlake Conservatory of Music e sua carreira como músico de estúdio nos trabalhos de todo mundo, de Thom Yorke a Tom Waits : tudo isso aparentemente garantido mas ainda no futuro.

“Acid for the Children” na verdade gira em torno de tudo que aconteceu com Flea antes daquele noite, uma cadeia de acontecimentos tão improvável quando o caminho do Red Hot Chili Peppers para a onipresença mundial. Flea é um bom manipulador de palavras e sabe quando é hora de usar esse talento.

“O garoto não mostrou cores bonitas”, ele diz sobre um mau sujeito que o viciou em uma mistura de maconha com PCP. A próxima sentença diz: “’angel dust’ é como fumar morte”.

E assim chegamos à pergunta que pende no ar naquele outubro quente sobre possibilidade, sobre destino, sobre o que é inerente a todos nós e sobre até que ponto contexto e circunstância podem alterar esse percurso.

Flea nasceu como Michael Balzary, em Melbourne, Austrália, no ano de 1962. Quatro anos mais tarde, seu pai, Mick Balzary, que trabalhava para o governo australiano como agente de alfândega, aceitou um cargo no consulado da Austrália em Nova York, e transferiu sua família para os subúrbios da cidade.

“Vivíamos em uma casa bacana como esta” –ele olha para a grande casa em estilo Craftsman por trás dele, na qual está hospedado com Melody Ehsani, designer de joias com quem se casou, enquanto a casa deles em Malibu passa por uma reforma -, “no agradável bairro suburbano de Rye, Nova York”.

O pai dele supostamente deveria ficar apenas quatro anos nos Estados Unidos. Pode existir algum universo paralelo em que isso tenha acontecido e Michael terminou crescendo na Austrália, jamais provou o ar noturno de Hollywood, e terminou sendo piloto de selva no Quênia, encanador na Estônia ou qualquer outro sujeito para quem a ideia de tocar baixo na MTV vestindo calças feitas de animais de pelúcia jamais teria ocorrido. “Meu pai continua a me dizer, sempre, que, se ele tivesse o que queria, eu teria sido engenheiro”, disse Flea, adotando com facilidade o sotaque australiano paterno.

“Eu gosto de imaginar que teria me rebelado e terminado no Birthday Party ou algo assim”, ele diz, em referência à primeira banda de Nick Cave, que estreou fazendo muito barulho em Melbourne no final dos anos 70. “Mas o mais provável é que eu estivesse bebendo uma [cerveja] Fosters em algum lugar da Austrália, trabalhando em uma usina de petróleo ou algo parecido”.

Em lugar disso, escreve Flea, quando ele vivia em Nova York sua mãe, Patricia, começou a aprender violão e se apaixonou por Walter Urban, o cara que lhe dava aulas. Os pais de Flea se separaram e Mick Balzary voltou à Austrália sozinho. Patricia levou Flea e a irmã dele, Karyn, para morar com Walter, que era baixista de jazz, no porão casa dos pais dele, em Larchmont. Walter se tornou o padrasto de Flea, e a vida em sua casa se tornou muito mais boêmia.

Em 1972, a família se mudou para Los Angeles, em busca de hipotéticas oportunidades de carreira para Walter, e a criação de Flea, já bem relaxada, deixou de lado as regras quase inteiramente. “Eu podia sair de casa e fazer o que quisesse a noite toda”, disse Flea. “Comecei a me drogar aos 12 anos. Estávamos nos anos 70, e preciso dizer que Hollywood era uma loucura nos anos 70”. 

Ele descreve noites em que ficava na rua até as quatro da manhã, conhecendo “pessoas de todos os tipos, pessoas que passavam por todas as formas de embriaguez. Pessoas em estado assustador. Pessoas em estado predatório”.

Ele era um Huckleberry Finn descontrolado, correndo à solta em um mundo que parecia o do filme “Repo Man”. Mas também gostava muito de música, basquete e livros –formas estruturadas, que ofereciam um senso de segurança que faltava em outras partes de sua vida. 

Flea, que convivia com “outros ratos de rua, ladrõezinhos baratos”, também se perdia e se encontrava nas palavras de Kurt Vonnegut e no som de Clifford Brown e Max Roach. Ele se sentia mais seguro nos confins limitados de seus interesses do que convivendo com os adultos de seu mundo. Conta que Urban era viciado e alcoólatra e propenso a ataques de raiva aterrorizantes. Mas amava ferozmente seu filho adotivo e o compromisso dele para com a liberdade de expressão artística despertou alguma coisa em Flea.

“Lembro-me de vê-lo tocar quando eu era criança”, disse Flea, “e da intensidade dele nessa hora, quando atacava ferozmente o instrumento, com os olhos fechados, suando, quase como se tivesse sido disparado. Quer estivesse ou não consciente disso, ele estava exorcizando os demônios que trazia dentro dele e usando isso como forma de produzir algo de verdadeiramente bonito”.

Flea disse que a despeito dos traumas que Walter causou à família, “ele realmente me deu coisas que são parte importante daquilo que me tornei”. “Às vezes, as pessoas escrevem esse tipo de livro para conseguir uma revanche”, disse David Ritz, autor de 46 biografias, alguns dias mais tarde, descrevendo agendas como a construção de uma narrativa que exalte a grandeza do biografado, ou a busca de revanche contra um cônjuge.

“No caso de Flea”, ele disse, “creio que o impulso é esclarecer e descobrir quem ele é e o que ele fez. E assim existe uma leveza no livro, mesmo que trate de assuntos pesados”. Em sua função como “ghostwriter”, Ritz ajudou a narrar as histórias das vidas de Aretha Franklin, Marvin Gaye e Ray Charles. Ele não escreveu “Acid for the Children’, mas reconhece educadamente que sua contribuição editorial é o motivo para que o livro tenha menos de 1,2 mil páginas.

Flea se define como “completamente despreparado” para o trabalho de escritor, jamais manteve um diário e diz que as únicas ocasiões em que tentou escrever sobre os acontecimentos cotidianos de sua vida “surgiram quanto eu estava realmente péssimo”. Editores o procuraram com propostas para um livro por muitos anos, ele diz, mas Flea sempre achou que uma autobiografia era uma coisa meio arrogante, uma atitude de astro do rock. 

Em 2015, no entanto, ele levou um tombo em uma viagem de “snowboarding” com Kiedis, em uma pausa nas gravações de “The Getaway”, e quebrou o braço em cinco lugares. “No começo, fiquei um mês tomando sedativos, o que era péssimo”, disse Flea. “Mas, assim que limpei a cabeça e me vi impedido de me mexer muito, apareceu um período de dois meses em que escrevi sem parar”. (Flea continua um pouquinho apaixonado pela versão original, e imensa, do livro: “Vejo beleza nela”’.)

Suas autobiografias favoritas incluem “Meu Último Suspiro”, de Luis Buñuel, “Harpo Spreaks”, de Harpo Marx, “The Moon’a a Balloon”, de David Niven, e “Beneath the Underdog: His World as Composed by Mingus”, de Charles Mingus. São todos livros em que a voz do protagonista parece altamente pessoal, mesmo que a escrita tenha exigido um colaborador. Ele suspeita de livros que atribuem crédito a “ghostwriters”, disse, e não queria escrever uma autobiografia dessa maneira.

“Isso realmente irritou David Ritz”, disse Flea, rindo. Os dois iniciaram um diálogo criativo, de qualquer modo. Ritz disse que a decisão de parar em 1983 foi ideia de Flea mas que era a decisão certa e está convicto de que, em Flea, estamos diante do próximo grande escritor americano, iniciando uma carreira brilhante. Ritz antevê que ele ganhará fama literária semelhante à de Patti Smith, que escreveu uma introdução em verso para o livro (“a providência lhe designou um instrumento/ que em suas mãos formou uma voz espectral”).

A essa altura, já estava claro que os deveres promocionais de Flea quanto ao livro custariam o passeio planejado com seus pastores australianos. Eles estavam deitados na grama, costas contra costas, como um par de parênteses invertidos. Flea estava falando sobre drogas, que têm papel importante no livro, a começar pela capa, uma foto que o mostra com cara de bebê fumando um baseado em uma praia de nudismo. Drogas mais pesadas não demoraram a atrair sua atenção. “Nunca me tornei um ‘junkie’”, disse Flea. “Passei por períodos em que injetava heroína, mas em seguida parava -‘isso é péssimo‘ - e preferia ouvir Minor Threat. Até que eu voltava a me drogar”.

Slovak, primeiro baixista do Chilli Peppers, morreu de overdose em 1988. Flea deixou as drogas de vez em 1993. Kiedis documentou seu ciclo de sobriedade e recaídas -e o custo que isso teve para sua amizade com Flea- em “Scar Tissue”, sua autobiografia publicada em 2004, um best-seller sórdido e sincero que Flea diz nunca ter lido. O livro fala de muita coisa que compartilhamos”, ele disse, ainda que tenha usado uma palavra mais pungente que “coisas”. “Não quero saber o que ele disse, porque sei que vai ser completamente diferente do que eu pensava”.

O relacionamento entre eles é o romance central em “Acid for the Children”, que, por terminar no ponto em que termina, poupa Flea do desgaste de discutir os problemas causados pelo vício de Kiedis. Mas o drama está lá, implicitamente, antevisto em momentos dolorosos de seus anos na escola como a viagem de acampamento na qual Flea perde a tampa do cantil de Kiedis enquanto o carrega de água no rio. Kiedis xinga o amigo e depois passa o resto da noite sem falar com Flea.

“Era um padrão doloroso, uma dinâmica que se repetia entre nós em muitos contextos, com os anos que vieram”, escreve Flea. “Eu era carente de apoio estável, ele era carente de controle estável. É sintomático de minha fragilidade, meu anseio por conforto familiar. Não existe luz sem sombra. O lado sombrio de nossa amizade”.

O rascunho original do livro, escrito durante o período em que o braço de Flea estava quebrado, acompanhava a trajetória da banda até “Californication”, o álbum que rejuvenesceu sua carreira, em 1999, e depois da última página da versão lançada há uma provocação brincalhona sobre um segundo volume. Flea diz que muda de ideia todos os dias sobre escrever ou não a continuação.

“Fiquei meio obcecado com a ideia de escrever um romance”, ele admitiu. Mas por enquanto,  o futuro só lhe reserva uma sessão de fotos. Mais cedo, ele tinha brincado sobre posar usando um blazer de tweed e segurando um cachimbo, ao modo tradicional dos literatos. Mas quando as câmeras estavam prontas, posou alegremente sem camisa.

The New York Times

Tradução Paulo Migliacci.