Tony Goes

'Nos Tempos do Imperador' foi uma boa novela, apesar de percalços e liberdades históricas

Mesmo com muitas qualidades, trama teve a menor audiência de seu horário

Dolores (Daphne Bozaski), Lota ( Paula Cohen ) e Nelio (João Pedro Zappa) no final de "Nos Tempos do Imperador" - João Miguel Júnior/Globo

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Exibida em 2017 pela Globo, "Novo Mundo" foi um marco na faixa das 18h. A novela de Thereza Falcão e Alessandro Marson transformou o processo de independência do Brasil numa aventura para adolescentes, repleta de índios, piratas e bandidos. Mas também recriou momentos cruciais da nossa história, como o Grito do Ipiranga.

Dado o sucesso de público e crítica, era quase inevitável que os autores pensassem numa espécie de continuação. A Globo aprovou rapidamente a sinopse de "Nos Tempos do Imperador", centrada no reinado de D. Pedro 2º. A estreia chegou a ser marcada para meados de 2019.

O primeiro adiamento aconteceu quando Silvio de Abreu, então o todo-poderoso da dramaturgia da emissora, decidiu passar na frente o remake de "Éramos Seis". "Nos Tempos do Imperador" ganhou uma nova data, 30 de março de 2020. Mas, duas semanas antes, a OMS declarou a pandemia do novo coronavírus, e tudo foi cancelado.

A novela só retomou as gravações no final daquele ano, e em ritmo lentíssimo –havia que se cumprir todos os protocolos de segurança. A estreia finalmente aconteceu em 9 de agosto de 2021, com quase todos os capítulos já gravados.

Os sucessivos atrasos serviram para a produção se esmerar ainda mais e os atores aperfeiçoarem suas interpretações. Mas o número de figurantes previsto teve que ser reduzido, diminuindo o impacto das cenas de batalha. Os beijos também foram poucos...

Só que este não foi o maior problema a afligir "Nos Tempos do Imperador". O período coberto pela novela abrange toda a Guerra do Paraguai, mas não chega a dois eventos definidores da nossa história: a Abolição da Escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, no ano seguinte. Sem isto, a trama teve que se concentrar em pequenos acontecimentos do cotidiano.

Mesmo assim, mostrou coisas fascinantes, todas com respaldo histórico. Como a Pequena África, o bairro erguido por negros libertos no centro do Rio de Janeiro. Ou a disputa entre as princesas Isabel e Leopoldina por seus noivos: elas de fato trocaram entre si seus prometidos originais.

Mas "Nos Tempos do Imperador" também tomou muitas liberdades históricas –a maioria, é verdade, em prol de uma melhor dramatização. Na novela, a residência imperial, o Palácio da Boa Vista, parece não ter porta: qualquer um vai entrando sem ser anunciado. Também é duvidoso que os monarcas Pedro e Teresa Cristina tivessem tantos amigos negros, por mais abolicionistas que fosse o casal (e mesmo quanto a isto há controvérsias).

Como qualquer produção de época, "Nos Tempos do Imperador" precisou dialogar com os dias de hoje e fazer acenos à modernidade. Foi-se o tempo em que atores negros só faziam papéis de cativos submissos em tramas ambientadas no século 19. A novela teve uma única escravizada de destaque: a dúbia Lupita, vivida com leveza por Roberta Rodrigues. Todos os demais personagens negros eram alforriados, ou nunca haviam sido escravos.

O empoderamento feminino, outro tema em pauta, também se fez presente. Pilar (Gabriela Medvedovski) formou-se como a primeira médica brasileira, algumas décadas antes de sua equivalente na vida real. Zaila (Helsaine Vieira) e Justina (Cinara Leal) não precisaram da ajuda de nenhum homem par escapar dos traficantes de mulheres que as sequestraram. Até mesmo a imperatriz Teresa Cristina, tida por alguns historiadores como passiva e carola, ganhou altivez na interpretação de Letícia Sabatella.

Sem falar no relacionamento lésbico entre Vitória (Maria Clara Gueiros) e Clemência (Dani Barros), praticamente à luz do dia –algo impensável para a rígida moral da época.

Mas todas essas escolhas dos autores não prejudicaram o andamento de "Nos Tempos do Imperador". A novela serviu como uma janela para um passado relativamente recente e, mesmo assim, muito pouco conhecido.

Também rendeu ótimos papéis a ótimos atores. Selton Mello brilhou em fogo baixo como Pedro 2º, um personagem comedido que deu margem a pouquíssimos arroubos. Tonico Mello destilou maldade como Tonico Mello, uma mistura entre um vilão de desenho animado e o presidente Jair Bolsonaro.

E Paula Cohen teve seu momento de maior destaque na carreira como a arrivista Lota. Uma figura cômica, que precisou vestir cores trágicas na reta final. Foi um desafio e tanto, que a atriz tirou de letra.

Pena que, com tantas qualidades, "Nos Tempos do Imperador" amargue o título de novela de menor audiência de seu horário. As causas podem ser muitas: além da falta de um evento histórico definidor, a trama foi quase toda gravada antes da estreia, o que impediu a equipe de fazer as correções de rumo necessárias a qualquer novela.

Alessandro Marson e Thereza Falcão têm o plano de escrever um terceiro folhetim, protagonizado pela princesa Isabel. Com os resultados de "Nos Tempos do Imperador", é improvável que esta ideia se materialize. Mas vou ficar na torcida.