A fronteira entre amizade colorida e amizade dolorida
O que fazer quando cada um quer uma coisa diferente na relação
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Fabrício tava pra lá de Bagdá quando veio falar com a gente num samba no centro de Florianópolis. Um olhar amargo diria que sou para-raios de maluco, mas um olhar afetuoso vai sacar essa bênção.
A gente ali em pé numa esquina movimentada do Canto do Noel –na parede do bar em frente lia-se "quando a vida está ruim é porque está perto de melhorar"– e, em meio a barulho, cheiro de cerveja e trombadas de bêbado, e ainda me desequilibrando do meio fio, eis que me aparece Fabrício, revelando a lindeza do seu coração.
Em menos de 10 minutos de papo já éramos amigos. Ele contou que era P.A. (pau amigo) da fulana, mas que gostava muito dela e que estava sofrendo porque queria mais da relação. Putz, esses desencontros partem todos os tipos de corações.
"Vai arregar de comer uma mulher que quer dar para você?", diria a masculinidade frágil. Tem sempre uma desculpa de peidorreiro para seguir transando, mesmo que a martelada acerte o coração junto com o rabo, ou, em outras palavras, mesmo que a ilha do prazer esteja rodeada pelo oceano do sofrer. Como se o desejo –carinhosamente chamado nessa coluna de fogo no rabo– suprisse carência ou insegurança. Quem dera... nem o maior peru do mundo tampa o buraco da alma, e muitas vezes acaba sendo uma faca de dois gumes.
Mestre de obras de dia e estudante de enfermagem à noite, além de pai e avô, Fabrício mostrou as mãos calejadas e seguiu abrindo o peito. Quem tenta esconder suas fragilidades, maquiando as emoções, perde o tesouro das conexões. Mas nem Fabrício nem nós demos bobeira.
Quando ele foi contando da rotina dura, dos apertos, da falta de tempo até para dormir, lembrei de mim mesma por anos a fio consumida pelo trabalho, correndo como hamster no círculo, sem nem saber que estava numa gaiola. A escassez deixa marcas, e as minhas me levaram a ser workaholic a ponto de não ver a vida passar.
Ô aflição que dá de ver amigos queridos ainda na mesma pira, sem perceber que já juntaram o suficiente, que não há mais motivo para seguir correndo sem nem saber para onde, para uma segurança financeira que parece nunca vir, já que sempre se quer mais do que se tem. Enquanto correm os filhos crescem, os amores esfriam, os casamentos acabam, os pais adoecem e a vida vai.
Contei para ele uma das várias coisas que aprendi no The Science of Well-being, curso que fiz de Yale: que é impossível ser feliz sem dormir direito. Que o curso dele de enfermagem vai ser concluído já já, que a vida vai para um lugar mais gostoso. E que talvez seu sofrimento fosse mais por exaustão que pela fulana. Que talvez ele devesse, no tempo tão apertado, cuidar de si, ao invés de sofrer por ela. Que tudo bem ela querer uma coisa e ele outra, mas que sofrer com isso era uma escolha dele. E isso me lembra do final de um poema do Drummond (e que também seria uma frase budista): "A dor é inevitável. / O sofrimento é opcional..."
Às vezes é isso, né? A gente escolhe sofrer. Quem nunca? Para bom entendedor meia palavra basta, e para quem está pronto, um peteleco é empurrão. Eis que Fabrício, para orgulho da Phoda Madrinha, que ele nem sabia que eu era, atravessa o samba, toma seu coração de volta para si e, por fim, termina com a fulana.