Ricardo Boechat conseguia, como poucos, ser ouvido por gregos e troianos
Jornalista da Band morreu em queda de helicóptero em SP
Na polarização que tomou rumos radicais nos últimos dois anos no Brasil, cresceu a tendência do público em se identificar com quem defendia um lado ou outro da moeda. Ricardo Boechat, 66, despertava reações de destempero nas duas pontas, mas conseguiu com que não fosse descartado por nenhuma das torcidas.
Não era o sujeito que o lado A deixava de ouvir porque falava do B, nem que o lado B rifava do seu rádio e da sua TV porque ele foi mais simpático ao adversário. No jornalismo, não há termômetro melhor do que despertar a ira de gregos e troianos.
O jornalista, que morreu na manhã desta segunda (11), em São Paulo, após a queda do helicóptero que o conduzia, fazia com José Simão, colunista da Folha, o melhor momento do rádio no dia. Por volta de 8h30, os dois batiam uma bola afinadíssima, que trazia as piores desgraças da política embaladas por um roteiro quase sem script, cujo sucesso era apoiado na química do diálogo entre os dois, com suas gargalhadas escancaradas, longe do modelo sisudo desenhado pelas escolas de raiz do jornalismo.
Sucesso alcançado no rádio, o jornalista levou a informalidade e alguma liberdade de comentar —menos que no rádio, mas algo que ia além de bordões indignados— para a bancada do Jornal da Band. Foi o primeiro dos grandes âncoras a atender celular e a interagir com o Whatsapp na apresentação de um telejornal de rede dessas proporções. Tinha estofo para entrevistas ao vivo, a qualquer momento, com tom incisivo, sem perder a elegância.
Elegância esta que foi dispensada algumas vezes, por motivos de força maior na impulsividade de um grande comunicador. Em junho de 2015, mandou o pastor Silas Malafaia “a procurar uma rola”. “Você é um idiota, um paspalhão, um pilantra, um paspalhão, explorador da fé alheia (...) você toma dinheiro das pessoas”, disse a ele, no ar, pela BandNews FM. O pastor contestava então a acusação de Boechat de que Malafaia e algumas vertentes evangélicas incitavam os fiéis à intolerância religiosa.
Esse Boechat que tivemos a chance de conhecer só mostrou tudo de que era capaz graças à Globo, que o demitiu em 2001, sob a alegação de falta de ética.
Na empresa dos Marinho, ele foi colunista do primeiro caderno do jornal O Globo e comentarista do Bom Dia Brasil, mas com certeza não teria tido a liberdade que teve na Band para exibir todo o seu potencial como comunicador.
A Globo o dispensou após a publicação de uma matéria pela revista Veja, em que o jornalista fora ouvido em um grampo telefônico, revelando ao jornalista Paulo Marinho, seu amigo, o conteúdo de matérias publicadas pelo Globo sobre a guerra pelo controle das companhias telefônicas no Brasil. Paulo Marinho trabalhava para Nelson Tanuyre, então principal acionista do Jornal do Brasil e aliado da TIM, empresa que disputava o controle da Telemig Celular e Tele Norte Celular, em confronto com o banqueiro Daniel Dantas.
Nem Boechat nem a Globo, no entanto, pareciam guardar rancor sobre a separação entre empregado e patrão. O jornalista sempre se referia ao seu passado na empresa dos Marinho com grande orgulho e respeito. A notícia sobre sua morte vem sendo dada em tom de grande comoção pelos noticiários da Globo, até agora, reconhecendo seu inestimável valor para o jornalismo brasileiro.
Mas Boechat já era uma figura bastante respeitada naquele momento. O que veio a seguir, pela trajetória na Band, que trouxe novo vigor ao radiojornalismo, foi o respeito aliado à popularidade. Sem um só roteiro em mãos, Boechat podia passar meia hora discorrendo sobre o escândalo ou a tragédia da véspera, construindo ideias com começo, meio e fim, sem gaguejar e quase sem se repetir.
Ainda no jornal O Globo, revelou o escândalo de quebra do sigilo do painel do Senado Federal, em 2000, quando expôs as falhas de segurança do sistema. Pouco depois, disse que a senadora Heloísa Helena havia traído o PT em votação que cassou o mandato do senador Luís Estêvão.
Nascido em Buenos Aires, Boechat começou no jornalismo com uma grande escola: foi assistente do lendário colunista social Ibrahim Sued, nos anos 1970, pelo Diário Carioca. Trabalhou ainda nos jornais O Dia, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil, além de O Globo, e vinha assinando uma coluna na Isto É. Acumulava na estante três prêmios Esso, um dos mais importantes do jornalismo nacional, e foi o jornalista mais premiado no prêmio Comunique-se.
Boechat estava dando uma palestra em Campinas, no interior do estado, na manhã desta segunda, e retornava a São Paulo, quando o helicóptero caiu em um trecho do Rodoanel que dá acesso à rodovia Anhanguera, na zona oeste de São Paulo. A BandNews vinha noticiando a queda do helicóptero e informando seus efeitos sobre o trânsito, sem saber que um dos passageiros mortos era seu âncora. Chegou inclusive a entrevistar um caminhoneiro que, emocionado, contou ter acelerado o caminhão ao ver a aeronave vindo abaixo, tendo escapado da queda do veículo.
A morte foi anunciada por seu colega, José Luiz Datena, às 13h51, durante programação da TV Bandeirantes: “Com profundo pesar, desses quase 50 anos de jornalismo, cabe a mim informar a vocês que o jornalista, amigo, pai de família, companheiro, que na última quarta, que eu vim aqui apresentar o jornal, me deu um beijo no rosto, fingido que ia cochichar alguma coisa, e, no fim, brincalhão como ele era, falou: ‘É, bocão, eu só queria te dar um beijo’. Queria informar aos senhores que o maior âncora da televisão brasileira, o Ricardo Boechat, morreu hoje num acidente de helicóptero, no Rodoanel, aqui em São Paulo. Ele foi a Campinas fazer uma palestra e o helicóptero que ele estava não chegou ao seu destino, que era o heliporto da Band. Ele caiu no Rodoanel e bateu num caminhão e as pessoas, segundo informações iniciais, teriam morrido na hora”.
Boechat deixa seis filhos e sua “doce Veruska”, como se referia à mulher, frequentemente, nas manhãs da BandNews FM.