Factoides

HUMOR: Machadão e Shakespeare estacionam no Leblon

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AO LEITOR

Peço licença aos meus sete leitores e meio (um é anão), pois hoje não pretendo escorregar em casca de banana ou enfiar o pé na jaca, como de hábito. Quero falar de assunto longínquo, já superado por vários linchamentos e vandalismos: o Machado reescrito. Meu amigo Ruy Goiaba tocou no assunto neste espaço, mas volto ao tema devido a recentes e dramáticas ocorrências.

CAPÍTULO 1: INTELECTUAIS EM FÚRIA

Estava eu tomando minha cerveja na Vila Madalena, quando dois intelectuais iniciaram furiosa discussão na mesa ao lado. "Mexer no Machado é populismo para iletrados!", dizia um. "Nenhum escritor é intocável! Nem Shakespeare é intocável!", argumentava o outro. Logo os dois estavam na calçada trocando socos e desaforos. "Filisteu!", berrava um. "Elitista!", urrava o outro.

Só se desgrudaram quando alguém teve a boa ideia de jogar água fria em cima. Foi neste momento que decidi escrever umas palavras sobre o assunto.

CAPÍTULO 2: MACBETH COM BACON

Machado de Assis não é William Shakespeare.

Há até quem diga que nem Shakespeare é Shakespeare, mas sim Christopher Marlowe ou Francis Bacon. Mas isso é outra história.

O fato é que a obra de Shakespeare é reescrita desde sempre, como revela o excelente "O livro dos livros perdidos", de Stuart Kelly (Editora Record). Os grupos teatrais ingleses costumavam imprimir as peças do autor por conta própria, muitas vezes adulterando grosseiramente as palavras dele. Ainda assim, Shakespeare sobreviveu às tempestades.

Eu, ignorante que sou, nunca li o bardo no original, mas vi as traduções do Millôr, assisti a várias montagens da obra dele e a muitas adaptações cinematográficas. Consigo resumir a trama de "Hamlet" e "Macbeth" com a maior facilidade, mas tenho certa dificuldade com "Dom Casmurro", "Quincas Borba" e "Brás Cubas".

CAPÍTULO 3: MAS QUE NADA

A grandeza de Shakespeare está não apenas nas palavras, mas, ironicamente, também nos artifícios popularescos das tramas: fantasmas que imploram por vingança, gente errada atrás da cortina, bruxas que falam por enigmas e florestas que andam. E sangue, muito sangue. Já o Machado... bem, a grandeza de Machado está nas palavras, não na trama. As histórias são banais: adultérios, suspeitas, desejos reprimidos, as pequenas ambições burguesas.

Banais, disse eu?

Mas "Ulysses", de James Joyce, é só a história de um cara que anda feito barata tonta por Dublin. E todo o Proust, o que é? Bobagens. Banalidades. Divagações sobre o nada. A questão, o grande desafio, virtual leitor, é fazer com que alguém se interesse pelo corriqueiro. Afinal, você jamais será Macbeth, mas pode ser Bentinho.

Compre um chapéu.

CAPÍTULO 4: LARRY DAVID

Os heróis literários de Machado são Laurence Sterne ("A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy") e Xavier de Maistre ("Viagem ao Redor do Meu Quarto"), autores que também escreveram sobre o nada. São páginas e páginas de digressões e divagações, como se eles fossem o Larry David da literatura.

A personagem é a linguagem e isso também vale para Machado. Destarte, reescrever o Bruxo do Cosme Velho é uma ofensa às leis de Deus e à ordem natural das coisas.

CAPÍTULO 5: A GLÓRIA QUE FICA

Não me entendam mal. Machado não é superior ou inferior a Shakespeare. Eles são apenas animais diferentes que habitam a mesma floresta. Um sobrevive em cativeiro, outro não.

Tem mais uma coisa: a literatura brasileira não tem grandeza épica. Nossa glória —e ela é rara— está na narrativa breve, leve, picaresca. Sem fantasmas, bruxas e florestas ambulantes. Vamos, portanto, zelar direito por essa glória que fica, enleva e consola.

EPÍLOGO

E aí, ABL? Tem alguém em casa?

Crédito: Edson Aran

A TRÁGICA E TRISTE HISTÓRIA DE GUILHERME GILLETTE

Guilherme Gillette olhou o balanço da empresa. O gráfico despencava como se fosse a avaliação do governo. Os homens não faziam mais a barba e a venda de lâminas descartáveis caía assustadoramente.
O negócio da família vinha desde 1789. Seu tetravô, Guilhotin Gillette, fizera fortuna com a invenção da guilhotina. Só tinha um problema: os clientes nunca voltavam.

Foi então que ele trocou as cabeças cortadas pelo barbear suave e macio. O sucesso foi imediato.

Nos anos 50, os homens se barbeavam duas vezes por dia e as lâminas vendiam que era uma beleza. O movimento caiu um pouco nos anos 70, mas os hippies ainda eram uma minoria. Rosto "desbarbado" era obrigatório no mercado de trabalho. E aí vieram os 80, com seus yuppies caras-de-bunda, óculos coloridos e gravatas de crochê. Foi a glória.

Tudo ficou muito bem até a primeira década do segundo milênio. Então a coisa começou a desandar. Barba por fazer ficou chique. Até marqueteiro usava. Marqueteiro, veja você! E os hipster barbados ganharam a cena, como se fossem uma versão acústica da Al Qaeda.

Felizmente, pensava Guilherme Gillette, ainda havia o mercado feminino.

"Deus seja louvado pelo 'brazilian wax'!", ele murmurou, desviando os olhos do gráfico para a imensa janela que mostrava a cidade aos seus pés.

Então sua secretária, Lourdes, entrou na sala. Lourdes era uma balzaquiana das mais atraentes, mas Guilherme notou algo estranho no rosto dela. Uma sombra de buço. Uns fiapos de barba.

"Lourdes...", ele disse, medindo cuidadosamente as palavras. "Tem alguma coisa diferente no seu rosto..."

"Ah, seu Gillette, o pelo é a última moda entre as mulheres, sabia não?", respondeu a secretária, enquanto colocava alguns papeis na mesa do chefe. "Deu no UOL. Chega de opressão machista depilatória! O negócio agora é mulher com barba, bigode e pernas cabeludas. Não é o máximo?"

Quando ela ergueu os olhos, Guilherme Gillette já tinha se jogado pela janela.


EDSON ARAN é autor de seis livros. O mais recente, "O amor é outra coisa" (Jardim dos Livros), fala sobre o sentido da vida e tem mais de duzentos pensamentos cretinos. Também é roteirista. Seu site é www.sitedoaran.com.br.

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