Apesar do batido tema demoníaco, 'Vade Retro' é quase um milagre
Desde que tentou Jesus Cristo no Novo Testamento, o diabo se tornou um personagem recorrente na cultura ocidental. Quantos milhares de livros, peças e filmes já não foram feitos onde o coisa-ruim aparece disfarçado de maneira sedutora, só para arrastar algum incauto para o inferno?
Grandes atores como Al Pacino ("O Advogado do Diabo", 1999) e Robert De Niro ("Coração Satânico", 1986) o encarnaram no cinema. Do "Fausto" de Goethe à novela "Corpo a Corpo" (Globo, 1985), o demônio é pop. Há poucas semanas, ele até foi apontado por um fiel possuído da Igreja Universal como o responsável pela saída da Record do cardápio das operadoras de TV paga.
Agora este assunto mais batido que milk-shake ganha roupagem de sitcom em "Vade Retro" (Globo), que estreou nesta quinta (20) assinada pelos maiores autores do gênero no Brasil: o casal Alexandre Machado e Fernanda Young. E que roupagem. Desde a obra-prima que foi "Os Normais" (Globo, 2001-2003), a dupla não marcava tamanho gol de placa.
A façanha é ainda maior se lembrarmos que o último trabalho de ambos na TV aberta foi malsucedido. "O Dentista Mascarado", de 2013, marcou a estreia de Marcelo Adnet na Globo, mas foi mal de público e crítica. Apesar do talento de todos os envolvidos, alguma coisa não deu liga.
Desta vez, deu. O texto afiadíssimo de Young e Machado caiu nas mãos de um elenco competente. Monica Iozzi se dá bem como a protagonista Celeste, uma advogada ingênua (e uma contradição em termos). Um papel difícil, que exige cuidado para não resvalar para a caricatura. Já Tony Ramos está do jeito que o diabo gosta como o suspeitíssimo empresário Abel Zebul, e obviamente se divertindo muito.
Os coadjuvantes também merecem destaque. Maria Luísa Mendonça empresta sua teatralidade para Lucy Ferguson, a esposa de quem Abel quer se divorciar, sem jamais cair no exagero. Juliano Cazarré vai contra o estereótipo do brutamontes a que estávamos nos habituando como Davi, o desajeitado namorado de Celeste.
Luciana Paes, depois de participar de séries da TV paga como "3%" (Netflix) e "Me Chama de Bruna" (Fox), volta à Globo como a secretária Kika, de onde extrai risadas de cada palavra. E Cecília Homem de Mello, produtora de elenco da O2 e atriz bissexta, reaparece com seu timing único como Leda, a mãe da mocinha.
A O2, uma das maiores produtoras independentes do Brasil, também é a responsável pela realização de "Vade Retro". O resultado é que o programa tem um acabamento raro na televisão brasileira, inclusive na própria Globo. Fotografia, direção de arte, movimentos de câmera, direção de atores e incríveis efeitos especiais estão em níveis dignos de Hollywood.
O segundo episódio de "Vade Retro" já está disponível para assinantes na plataforma Globo Play, e confirma que o brilho não se esgotou na estreia.
Com produção requintada e apenas uma pitada da escatologia que marca o estilo dos autores, "Vade Retro" parece ser a rara série cômica brasileira onde tudo funciona. E isto é quase um milagre, se não for obra do demônio.
Comentários
Ver todos os comentários