Tony Goes

Musical com Claudio Botelho é a primeira vítima da polarização política

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Pronto, já temos um morto. Felizmente, não é um ser humano. Mas não deixa de ser uma perda considerável: o espetáculo "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos" foi fulminado pela metralhadora da radicalização.

A esta altura, todas as pessoas bem informadas já sabem do que se passou em Belo Horizonte na noite de sábado (19). O ator Claudio Botelho, também diretor da peça, inclui um “caco” (fala improvisada) no texto, insinuando que Lula e Dilma são ladrões. Algumas pessoas da plateia vaiaram, e Botelho as confrontou em cena aberta. O teatro veio abaixo sob os gritos de "não vai ter golpe" e aquela récita foi cancelada, assim como a do dia seguinte.

Os "cacos" não são fáceis. Para bem executá-los, um ator precisa estar em diversas sintonias ao mesmo tempo: com o sentido original do texto, com os assuntos do noticiário, com o humor da plateia, com o universo. Basta uma delas estar em "off" para sobrevir o desastre. O "caco" é como a pergunta que o advogado faz à testemunha num tribunal: é preciso ter certeza da resposta.

Botelho achou que tinha, e se deu mal. Na verdade, demonstrou insensibilidade e deselegância: criticou o governo petista justamente num musical que homenageia um dos mais célebres apoiadores deste governo.

Chico Buarque não gostou, com razão, e retirou a autorização para que suas músicas fossem utilizadas nos espetáculos dirigidos por Botelho e seu parceiro Charles Möeller. Desta forma, "Todos os Musicais..." —que já estava em fim de carreira, três anos depois de estrear— teve morte súbita.

Mas o pior nem foi isto. Algum amigo da onça gravou a discussão que Botelho teve com a atriz Soraya Ravenle no camarim, e a divulgou nas redes sociais. No áudio, o ator e diretor está compreensivelmente exaltado, depois do embate que protagonizou. Por isto, dá para perdoar besteiras que ele disse, como "o ator que está em cena é um rei". O oposto é verdadeiro: um ator em cena está extremamente vulnerável. Está pelado, mesmo sob camadas de roupas, à mercê de apupos e tomates.

Outra fala de Botelho foi mal interpretada pelo tribunal da internet. Ele diz que "um ator não pode ser peitado por um 'nêgo'", mas claro que entenderam que ele havia dito "negro", de maneira racista. Botelho é carioca, e no Rio é comum usar o termo "nêgo" no sentido de "alguém". Ele mesmo se explicou depois, mas foi inútil. Seu linchamento virtual continua a todo vapor.

Minha conclusão: Claudio Botelho errou, ao emitir sua opinião política na hora e no local errados (e isto não tem nada a ver com liberdade de expressão). Foi inábil; não soube ler seu público nem honrou sua fonte de inspiração. Mas não cometeu crime de lesa-majestade. Seu castigo é desproporcional, como são todos nesses tempos onde todo internauta é juiz e carrasco.

Temo que ele tenha sido apenas a primeira fatalidade de um conflito ideológico que vem se acirrando. Adianta pedir calma a todas as partes? Ou teremos que passar por essa luta fratricida, para estarmos mais maduros quando vier a paz?

 

 

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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