Tony Goes

A barbárie contra a mulher não pode ser espetáculo

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Esta semana, diversos colunistas homens da Folha e do UOL estão cedendo seus espaços para que mulheres exponham seus pontos de vista. Eu também aderi ao #AgoraÉQueSãoElas e convidei Daniela Abade para opinar sobre a maneira como a mulher é tratada pelo showbiz brasileiro.

Daniela é roteirista de TV e tem três romances publicados: "Depois que Acabou", "Crônicos" e "Mirtes Ainda Vive".


"Até mais ou menos o século 6 depois de Cristo, assistir a assassinatos era diversão em Roma. Os escravos eram soltos em grandes estádios para combates mortais que ocorriam entre eles mesmos ou para lutar contra leões, tigres, ursos ou qualquer fera faminta que estivesse disponível por lá. As pessoas enchiam os estádios, aplaudiam e, com sorte, até decidiam quem deveria viver ou morrer. Isso era o conceito de diversão de uma sociedade ocidental há algum tempo.

Hoje, felizmente, ninguém que não tenha um alto grau de psicopatia ri de um assassinato ou acha divertido assistir a pessoas se matando. Isso é um exemplo básico de que a sociedade evolui —que o espetáculo e que o humor evoluem. Algumas coisas simplesmente perdem a graça, porque é isso o que acontece quando nós viramos pessoas melhores.

Voltei esse tanto no tempo por causa de dois episódios recentes que acabaram virando tópicos de humor por dois seres ligados à área de entretenimento. O primeiro caso foi o tão falado teste do Enem que colocou a violência da mulher como tema da redação. Num país onde a violência é endêmica, onde todas as mulheres da minha e da sua família já sofreram algum tipo de assédio, é claro que isso não é piada. Mas Danilo Gentili achou que seria superbacana ter um convidado fazendo graça sobre o tema. Como se não bastasse, Gentili resolveu responder com violência a qualquer pessoa que questionasse a pauta de seu programa nas redes sociais. A violência contra a mulher foi colocada em prática nas respostas que ele deu.


Outro episódio foi a hashtag proposta pelas meninas da ONG Think Olga sobre o primeiro assédio, motivada por ataques de pedófilos a uma participante do 'MasterChef Junior' (Band). Isso é o tipo de coisa que mulher não comenta: é tão traumático e, normalmente, tão precoce, que a reação natural é tentar esquecer. É o silêncio. Tirar o véu dessa lembrança e expor essa violência é doloroso. Reconhecer que você não sofreu sozinha, que milhares de outras mulheres de idades e gerações diferentes passaram pelas mesmas coisas, é indescritivelmente triste. E daí vem Roger, o cantor falido dos anos 80, fazer piada com isso. Para ele e seus comparsas, quem não ri é chato, é comunista (porque qualquer tema minimamente humanista é 'pauta de esquerda').

Crédito: Reprodução/Twitter ONG ThinkOlga pede a usuárias do Twitter que relatem a primeira vez que sofreram assédio (Primeiro Assedio)
ONG ThinkOlga pede a usuárias do Twitter que relatem a primeira vez que sofreram assédio (Primeiro Assedio)

Então não pode rir de nada? O que é o humor? Bom, o Porta dos Fundos é um exemplo de excelente humor popular. Essa turma normalmente acerta, porque ri do opressor, não do oprimido. Em vez de bater em quem sempre apanha, bate na causa da violência. Tem coragem de olhar para cima e falar 'você, que se acha grande coisa, você é o ridículo, você é o errado'. Porque para fazer humor é preciso de coragem. Rir do mais fraco não é humor. É burrice. É covardia. É barbárie. E mais triste é saber que tem gente que ainda aplaude esse tipo de espetáculo."

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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