Clichês jornalísticos são divertidos, mas prejudiciais
Uma câmera mostra o rapaz correndo desesperado, como se fosse tirar o pai da forca. Outra câmera mostra os portões se fechando devagarinho. As duas imagens se tornam uma só: o rapaz implorando para entrar, sob o olhar indiferente dos funcionários. Ele perdeu o horário da prova por 0,5 segundos.
Esta cena se repete nos noticiários da TV desde os anos 70, quando o vestibular se massificou. E continua em cartaz até hoje, agora por causa do Enem. Não é uma notícia que impacte a vida de ninguém. Mas por que ela se tornou um clichê jornalístico?
Talvez porque ela atenda ao sadismo latente dos espectadores. Adoramos ver alguém se estrepando, ainda mais se a "culpa" é da própria pessoa. De que adiantou estudar um ano inteiro, só para perder a hora no dia D? Bem feito, hahaha.
Mas a cena se repete também por causa de uma certa preguiça que permeia o jornalismo. Estes clichês são ainda mais frequentes quando se referem a acontecimentos periódicos, como eleições ou feriados.
"Brasileiros votam na festa da democracia". "Como é o Natal de quem trabalha no dia 25 de dezembro". "Vai faltar peixe na Semana Santa". Quantas vezes já nos deparamos com essas manchetes?
Tantas repetições seriam até engraçadas se não houvesse nada mais a dizer sobre determinados assuntos. Mas é claro que há: basta pensar um pouquinho. Os benefícios seriam consideráveis.
Vou dar um exemplo concreto. O verão se aproxima, e com ele a temporada de chuvas torrenciais. Claro que haverá enchentes e deslizamentos. É natural (mas não é aceitável) que governantes reajam com surpresa, como se nunca chovesse nessa época. Mas a imprensa não pode reagir do mesmo jeito.
"Choveu mais em um único dia do que estava previsto para um mês inteiro". Há quantos anos não escutamos esta frase? O espanto com as tempestades de verão é tão ridículo quanto alguém se admirar com o fato do ano novo começar em 1º de janeiro.
Ao invés de reagir com surpresa (e assim fazer o jogo de quem está no poder), os jornalistas têm o dever de se antecipar. Checar se obras foram feitas e cobrar por que não foram. Ajudar o público a se prevenir. Correr na frente, não atrás.
Os clichês jornalísticos nos dão uma falsa sensação de segurança. "Tudo continua como sempre foi". Mas isto é mentira. O mundo muda cada vez mais rápido. E quem não se apressar para entender essas mudanças corre o risco de dar com o nariz na porta.
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