Tony Goes

Clichês jornalísticos são divertidos, mas prejudiciais

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Uma câmera mostra o rapaz correndo desesperado, como se fosse tirar o pai da forca. Outra câmera mostra os portões se fechando devagarinho. As duas imagens se tornam uma só: o rapaz implorando para entrar, sob o olhar indiferente dos funcionários. Ele perdeu o horário da prova por 0,5 segundos.

Esta cena se repete nos noticiários da TV desde os anos 70, quando o vestibular se massificou. E continua em cartaz até hoje, agora por causa do Enem. Não é uma notícia que impacte a vida de ninguém. Mas por que ela se tornou um clichê jornalístico?

Talvez porque ela atenda ao sadismo latente dos espectadores. Adoramos ver alguém se estrepando, ainda mais se a "culpa" é da própria pessoa. De que adiantou estudar um ano inteiro, só para perder a hora no dia D? Bem feito, hahaha.

Mas a cena se repete também por causa de uma certa preguiça que permeia o jornalismo. Estes clichês são ainda mais frequentes quando se referem a acontecimentos periódicos, como eleições ou feriados.

"Brasileiros votam na festa da democracia". "Como é o Natal de quem trabalha no dia 25 de dezembro". "Vai faltar peixe na Semana Santa". Quantas vezes já nos deparamos com essas manchetes?

Crédito: Julia Chequer/Folhapress Foto clássica de candidato atrasado para a prova do Enem no último sábado
Foto clássica de candidato atrasado para a prova do Enem no último sábado

Tantas repetições seriam até engraçadas se não houvesse nada mais a dizer sobre determinados assuntos. Mas é claro que há: basta pensar um pouquinho. Os benefícios seriam consideráveis.

Vou dar um exemplo concreto. O verão se aproxima, e com ele a temporada de chuvas torrenciais. Claro que haverá enchentes e deslizamentos. É natural (mas não é aceitável) que governantes reajam com surpresa, como se nunca chovesse nessa época. Mas a imprensa não pode reagir do mesmo jeito.

"Choveu mais em um único dia do que estava previsto para um mês inteiro". Há quantos anos não escutamos esta frase? O espanto com as tempestades de verão é tão ridículo quanto alguém se admirar com o fato do ano novo começar em 1º de janeiro.

Ao invés de reagir com surpresa (e assim fazer o jogo de quem está no poder), os jornalistas têm o dever de se antecipar. Checar se obras foram feitas e cobrar por que não foram. Ajudar o público a se prevenir. Correr na frente, não atrás.

Os clichês jornalísticos nos dão uma falsa sensação de segurança. "Tudo continua como sempre foi". Mas isto é mentira. O mundo muda cada vez mais rápido. E quem não se apressar para entender essas mudanças corre o risco de dar com o nariz na porta.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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