Tony Goes

O filme "Tropicália" ilumina a caretice que vivemos hoje

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Fui assistir ao documentário "Tropicália" e saí maravilhado do cinema. O tropicalismo foi uma explosão de criatividade que mudou a música brasileira para sempre. O mais incrível é que durou pouquíssimo tempo: na prática, apenas o ano de 1968, que começou com o lançamento do disco coletivo que deu nome ao movimento e terminou com a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

E nem era a única coisa importante que rolava na nossa cena musical naquela época. A Jovem Guarda corria em paralelo, com Roberto Carlos e sua turma traduzindo o rock para uma sensibilidade brasileira de maneira deliciosamente alienada. Do outro lado, surgia o termo "MPB", com nomes engajados politicamente como Chico Buarque e Elis Regina.

O tropicalismo fazia o elo entre essas correntes. Ou, melhor dizendo, uma geleia que as misturava com muitos outros ingredientes, como o brega --que ainda não tinha esse nome, mas já bombava nos radinhos das empregadas domésticas.

O excelente filme de Marcelo Machado faz um rasante sobre esse período tão fértil, sem muitas elucubrações. Não é lá dos mais didáticos: quem nunca ouviu falar do assunto talvez fique sem entender muito bem de onde vieram e para onde foram os tropicalistas. Mas mesmo este espectador hipotético vai reconhecer várias das canções, que se tornaram clássicas e influenciaram muito do que veio depois.

Se bem que o maior legado do tropicalismo talvez seja comportamental. O movimento pregava a liberdade, tanto do corpo como da cabeça, e assim conseguiu irritar a esquerda e a direita. Não havia dogmas, não havia preconceitos. Tudo pode ser bom. É proibido proibir.

É irresistível pensar se algo parecido teria eco no Brasil de hoje. Claro, os tempos são outros. Não há mais a efervescência da década de 60, nem o arrocho político. As liberdades democráticas estão em pleno funcionamento.

Mas vivemos um outro tipo de repressão. Rita Lee foi massacrada na internet por ter reclamado da ação da polícia durante um show em Aracaju. Uma dupla sertaneja faz sucesso com canções homofóbicas. O crescimento do conservadorismo obrigou as emissoras de TV a exibir menos nudez no horário nobre.

Os tropicalistas talvez fossem ainda mais atacados nos dias que correm do que em 1968. Seriam acusados de fazer apologia às drogas e ao amor livre por milhares de comentários anônimos na web. É estarrecedor pensar que Baby Consuelo, que começou a carreira surfando na onda pós-tropicália, tem hoje duas filhas envolvidas com o "culto das princesas".

Por tudo isto, talvez esteja mais do que na hora de surgir uma versão "reloaded" do tropicalismo. Um movimento que nos liberte da ditadura estética, moral e gananciosa que se insinua a cada dia. Assistir a "Tropicália" é um bom começo: que o filme sirva de inspiração para sairmos da passividade que está nos engolindo.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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