Cobertura da morte de Cristiano Araújo reflete empobrecimento da pauta cultural
Quase 30 anos atrás, nesta mesma Folha, minha rotina como editor-assistente da "Ilustrada", responsável pela pauta, me faria chegar à Redação às 6h da manhã, abrir a máquina de escrever —que ficava presa embaixo do mesa de trabalho (e tinha que fazer força para levantar aquele tampo!) —e escolher, entre as opções culturais de São Paulo (e eventualmente do Brasil e do mundo), para escalar os repórteres a escrever sobre os assuntos.
A partir disso, fiquei tentando imaginar como seria essa mesma rotina na manhã desta última segunda-feira (29). Chegaria a uma Redação ligeiramente mais moderna, já com os "trend topics" mais quentes na tela do meu smartphone e não hesitaria: daria destaque para a fúria dos fãs de Cristiano Araújo com um repórter que usou a cobertura da morte do cantor para falar da pobre cena cultural brasileira. No caso, eu.
Mudaram os tempos ou mudou o pauteiro? Posso ter um viés neste caso, mas aposto na mudança dos tempos
A convite da GloboNews, escrevi a crônica para o "Jornal das 10" do último sábado (27), ainda sobre o efeito inebriante de uma cobertura funerária de um artista que, mesmo com todo o talento que sua breve carreira permitiu que ele exibisse, ainda tinha espaço para crescer no próprio cenário musical no qual ele surgiu —o sertanejo —e tornar-se uma estrela que justificasse uma cobertura de peso, como vários figurões da nossa música popular que se foram mereceram no passado.
Quis colocar, diante do espetáculo de mídia que foi a cobertura do caso, questionar a própria pauta cultural de nossos tempos.
Não queria exatamente dar a capa para o balé de Bolshoi —que estava na cidade esta semana —, mas dentro do próprio universo sertanejo poderia quem sabe perguntar o que está passando pela cabeça dos seus colegas de geração que têm uma agenda lotada pela frente para encarar.
Mas para que elaborar quando este mesmo que aqui escreve deu de bandeja um assunto tão suculento quanto uma rixa popular? Os fãs reagiram como fãs —preferiram se manifestar não baseados no texto original, mas na repercussão da repercussão da repercussão que chegou a eles, claro, por outro fã já transtornado.
E então o céu escureceu —ou pelo menos é essa a impressão que a manifestação massiva (e negativa) deles nas redes sociais sugere. Do lado de cá, de quem recebe, sigo observando curioso.
O "bullying" virou o assunto e a diversão —segue até agora enquanto você lê isto. E as chances de redenção são quase zero. Afinal, é muito mais divertido juntar-se a um coro histérico do que admitir que se assumiu uma postura precipitada.
Mas, enquanto esses mesmos fãs usam o achincalhamento público como um anestésico para sua dor —que é genuína—, a questão que me motivou inicialmente a escrever sobre o assunto segue camuflada sobre toda a cacofonia: empobrecemos na nossa pauta cultural.
E não porque o sertanejo não é erudito. Mas porque ele foi eleito como tal, numa terra que só é de cego porque ninguém tem a competência de lembrar que tem pelo menos um olho para reinar.
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