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O vilarejo perdido revelado por uma seca na Inglaterra

Nos períodos de seca, quando os níveis da água do reservatório diminuem, a vila de Derwent reaparece
Nos períodos de seca, quando os níveis da água do reservatório diminuem, a vila de Derwent reaparece - BBC News Brasil/Anthony Devlin\Getty Images
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Helen Moat
BBC News Brasil

Não restou nada. As ruas de casas de pedra, a igreja, a antiga escola, tampouco as ovelhas que pastavam nas encostas. Apesar dos protestos, o Departamento de Água do Vale Derwent inundou o vilarejo para fornecer água para as cidades em expansão na região central da Inglaterra. Em 1945, a vila Derwent deixou então de existir, e deu lugar a um reservatório de água: o reservatório Ladybower.

Após concluírem a construção da barragem necessária para criar o reservatório em 1943, as águas das chuvas, que escoavam das montanhas, e dos rios encheram o vale –e, lentamente, o nível da água subiu. A partir de então, não havia mais nenhum vestígio da vila Derwent, exceto a torre fantasmagórica da igreja que despontava no reservatório durante os períodos de seca, quando o nível da água diminuía.

Nestas ocasiões, a população local voltava para observar o espetáculo misterioso com uma espécie de fascínio mórbido, como se lembrasse a eles que a vila já existiu. Alguns juravam que podiam ouvir o sino da igreja tocando embaixo d’água –embora o sino tenha sido removido antes de a vila ser inundada.

Antes das duas Guerras Mundiais, a vila Derwent e sua vizinha, Ashopton, pareciam tão permanentes quanto os pântanos do Peak District ao norte deles, com suas construções de pedras seculares e comunidades há muito estabelecidas.

No início do século 20, a construção de barragens obrigou os moradores a abandonarem as vilas Derwent e Ashopton, na Inglaterra
No início do século 20, a construção de barragens obrigou os moradores a abandonarem as vilas Derwent e Ashopton, na Inglaterra - BBC News Brasil/Helen Moat

Inicialmente, o Departamento de Água reservou uma área isolada no alto do vale para criar duas barragens preliminares e os reservatórios de Howden e Upper Derwent. O pequeno número de moradores das fazendas e das pequenas propriedades afetadas foi removido por questões de segurança para as vilas de Derwent e Ashopton, no vale.

Ninguém sonhava que esta parte do Vale Derwent, com seus dois belos vilarejos, também seria inundada em breve. A construção dos dois primeiros reservatórios foi um empreendimento enorme: realocar moradores; organizar mão de obra; preparar o terreno; instalar as tubulações; construir pontes e, finalmente, as barragens. Uma nova vila temporária surgiu nas proximidades para abrigar as centenas de trabalhadores.

A vila recebeu o nome de Birchinlee e foi apelidada de "Cidade de Lata", uma vez que suas construções eram feitas de chapa de metal ondulada –fáceis de erguer e desmontar após a conclusão da obra. Apesar da vida curta, a vila modelo tinha todas as instalações necessárias: hospital, escola, refeitório (que também servia de pub), agência dos correios, espaço de recreação e estação ferroviária. Tinha até uma delegacia de polícia.

Em 1912, o reservatório Howden foi concluído e, quatro anos depois, o reservatório Upper Derwent ficou pronto. As centenas de trabalhadores e suas famílias fizeram as malas e foram embora. E a "Cidade de Lata" foi desmontada. Logo, o Departamento de Água percebeu que os reservatórios Howden e Upper Derwent não estavam atendendo à demanda cada vez maior das cidades da região central da Inglaterra, como Sheffield e Leicester.

Um terceiro reservatório, Ladybower, foi aprovado para ser construído mais ao sul, embora as vilas Derwent e Ashopton tenham protestado contra sua construção –elas simplesmente precisariam ser inundadas com o vale. As obras do reservatório Ladybower começaram em 1935, e os moradores afetados foram novamente removidos para outras áreas.

Quando me mudei para o Peak District em 2000, havia poucas evidências de que Birchinlee já tivesse existido. Determinada, parti em busca da "Cidade de Lata", alguns anos atrás, seguindo uma trilha em linha reta junto ao reservatório Howden, onde outrora havia uma linha férrea.

Não havia sinal das casas de lata; apenas suas fundações de pedra permaneceram. No entanto, painéis informativos erguidos ao longo da linha férrea mostravam uma série de fotografias em preto e branco dos moradores temporários trabalhando e brincando em frente às casas de lata, com legendas explicativas embaixo.

Havia fotos de marinheiros –trabalhadores itinerantes– atarefados nos canteiros de obras, mulheres e crianças lavando roupa fora das modestas habitações, e famílias posando dentro de casas surpreendentemente acolhedoras.

Soube que uma das casas havia sido remontada em Hope, uma vila vizinha, e encontrei este último resquício da "Cidade de Lata" espremido entre prédios de uma rua lateral –a casa de chapa de metal ondulado agora era um modesto cabeleireiro.

Também consegui visitar a ponte do vilarejo que foi reconstruída em Slippery Stones, atravessando o rio na cabeceira do reservatório Howden. A lendária ponte foi transferida para lá, pedra por pedra, antes da inundação. Após ter explorado Birchinlee e Slippery Stones, esperava que as ruínas submersas de Derwent se revelassem em breve, como às vezes acontece durante períodos de seca.

Derwent fez uma breve aparição no verão de 1976, e mais uma vez em cada uma das décadas seguintes –a mais recente havia sido em 2003. Ashopton, a segunda vila submersa, também repousa sob a água, mas eu sabia que não havia chance de vê-la, já que está enterrada sob o lodo. Mas o que teria restado de Derwent debaixo das águas do reservatório Ladybower?

A sorte estava do meu lado. Em 2018, o verão foi quente e seco. As águas do reservatório diminuíram, até que as pedras remanescentes da vila Derwent emergiram das margens cobertas de lama. Em meados de setembro, as ruínas da igreja estavam expostas. Nos arredores, era possível avistar o que restou de outras construções.

O nível do reservatório continuou a diminuir, e eu pude caminhar até as ruínas da imponente sede da prefeitura de Derwent, pisando cuidadosamente no solo lamacento do reservatório. Entre os escombros, uma impressionante lareira de pedra com colunas arredondadas permanecia praticamente intacta, e o portão ornamentado do prédio se erguia atrás dela.

Ao vagar pelos escombros, imaginei as histórias que podem ter sido vividas dentro daquelas paredes. O caminho atrás da igreja que levava à escola também foi exposto, com a pequena ponte que atravessava o riacho. Havia um ar de mistério e melancolia nas pilhas de pedras escurecidas.

Essa imagem era muito distante das fotografias em preto e branco que eu tinha visto da vila: crianças em idade escolar andando por uma estrada arborizada com chapéus de palha; meninos perambulando por um riacho; moradores curvados sobre as pontes. Fotos antigas da prefeitura de Derwent revelavam uma grande sala decorada com painéis e um salão de baile ornamentado.

Me perguntei se haveria alguém que se lembrasse das vilas desaparecidas, alguém que poderia dar vida àquelas ruínas. Um amigo me sugeriu falar com Mabel Bamford, 92, que mora na vila Bamford, ao sul dos reservatórios. Mabel me recebeu em sua casa com passos fortes e olhos brilhantes. "Talvez eu seja a última pessoa que se lembra de Ashopton e Derwent", disse ela alegremente.

Bamford me convidou para sentar, ansiosa para começar a contar sua história. "Quando o Rose Cottage, em Ashopton, ficou desocupado, meus pais se mudaram para lá e moramos na vila até 1938." "O que você lembra da vida em Ashopton?", perguntei.

“Lembro que a nossa casa era muito simples. Não havia eletricidade, apenas uma lâmpada de parafina na sala de estar. Usávamos velas em todos os outros cômodos. O banheiro era um anexo rudimentar bem longe da casa.”

Assenti com a cabeça, relembrando os relatos que li sobre moradores realojados pelo Departamento de Água em casas com banheiros modernos. Aquilo tinha facilitado a mudança. “E a vila Derwent, Mabel? Você se lembra de lá?”, segui perguntando.

“Ah, sim, eu frequentava a escola lá, mesmo quando o reservatório de Ladybower estava sendo construído. Tínhamos que caminhar mais de 2 quilômetros até Derwent. Às vezes, caçadores nos davam uma carona na temporada de perdizes. Mas nós gostávamos mais das caronas oferecidas pelos operários. Eles nos levavam para dentro das grandes tubulações pretas que estavam construindo no local do reservatório”, relembra.

Ela continuou: "Lembro que, no frio, havia sempre uma lareira acesa na escola. A gente levava uma batata grande com nossas iniciais gravadas, o professor assava e dava uma xícara de chocolate quente."

Bamford me contou outras histórias: do policial que foi à casa dela para repreendê-la por roubar maçãs; e da empolgação em Ashopton, quando os proprietários de um posto de gasolina geraram eletricidade com uma engenhoca semelhante a um moinho de vento.

Saí de lá me sentindo privilegiada por ter ouvido as histórias de Bamford sobre os vilarejos inundados. Um ano depois, as ruínas da vila Derwent retornaram às profundezas escuras do reservatório Ladybower. Eu fico pensando: será que a vila Derwent ficará escondida por pelo menos mais uma década? Ou será que com as mudanças climáticas seu reaparecimento vai se tornar algo corriqueiro? É esperar para ver.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

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