Você viu?

Será que mudanças na alimentação propiciaram o som do 'F'? Estudo analisa a linguagem

Substituição para comidas mais macias mudou desenvolvimento

Esqueleto descoberto na Bolívia
Esqueleto descoberto na Bolívia - Rickey Rogers/ Reuter
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Joanna Klein

Milhares de anos atrás, alguns de nossos antepassados abandonaram o estilo de vida da caça e coleta e começaram a se assentar. Cultivavam legumes e grãos, para mingaus e cozidos, criavam vacas para obter leite, que transformavam em queijo, e produziam vasilhas de cerâmica para armazenagem.

Se eles não tivessem feito essas coisas, falaríamos as linguagens e produziríamos os sons que ouvimos hoje? Provavelmente não, aponta um estudo publicado na quinta-feira (14) pela revista Science.

"Certos sons, como os associados ao fonema F, são recentes, e podemos afirmar com confiança razoável que eles simplesmente não existiam, 20 mil ou 100 mil anos atrás", disse Balthasar Bickel, linguista da Universidade de Zurique e um dos autores do novo estudo.

O projeto concluiu que a transição para o consumo de alimentos mais macios mudou a maneira pela qual as mordidas se desenvolvem, à medida que as pessoas envelhecem. A mudança física, apontam os autores, facilitava para os agricultores a produção de sons como os do F e do V.

Por meio de diversos outros processos dos quais o estudo não trata diretamente, esses sons chegaram a cerca de metade dos idiomas em uso hoje. Os autores do estudo defendem que os fatores biológicos sejam considerados com mais atenção no estudo do desenvolvimento da linguagem humana.

Diversos linguistas concordam em que as constatações são plausíveis, mas outros disseram que as conclusões mais amplas do estudo sobre os efeitos da agricultura na linguagem podem ser precipitadas. Alguns acautelaram contra interpretações que possam inadvertidamente reafirmar visões etnocêntricas ou racistas desacreditadas, que no passado macularam o estudo da linguística.

Bickel e seus colegas revisitaram uma questão sobre as origens da linguagem: alguns dos sons diversificados que ouvimos foram adquiridos apenas recentemente? Embora a maioria dos linguistas acredite que as capacidade linguísticas sejam universais e não tenham realmente mudado ao longo da história humana, o novo estudo sugere que, nos últimos milhares de anos, a agricultura promoveu o surgimento de novos sons, nas vozes humanas

Em 1985, um linguista chamado Charles Hockett observou que os sons do F e do V apareciam com menor frequência, ou estavam ausentes, nas linguagens de alguns grupos de caçadores-coletores. Ele propôs a hipótese de que mudanças na alimentação, promovidas pela difusão da agricultura, possam ter alterado os dentes e as mandíbulas, tornando mais fácil a produção de determinados sons e mais difícil a articulação de outros.

Mas muita gente criticou a ideia de Hockett, que ele terminou por abandonar - e isso aconteceu antes que os linguistas começassem a favorecer o papel do cérebro no desenvolvimento da linguagem, de preferência a influências sociais ou físicas.

De lá para cá, porém, pesquisadores descobriram que, por meio de processos graduais, a dieta pode dar forma à mordida humana. Mas a conexão entre isso e os sons não é clara.

No novo estudo, os pesquisadores estudaram milhares de linguagens, Com simulações de computador usando bocas de formatos diferentes e outras técnicas desenvolvidas pela paleoantropologia, linguística, ciência da fala e biologia evolutiva, os cientistas constataram que comer alimentos mais macios, associados à agricultura, mudava a mordida dos adultos.

Para as pessoas que vivem seguindo a dieta típica dos caçadores-coletores, a sobremordida das mandíbulas e dentes muitas vezes é substituída por mordidas paralelas, em que os dentes superiores e inferiores da frente ficam alinhados. Mas quando a dieta inclui mais alimentos macios, a sobremordida pode persistir na idade adulta.

Quando a pessoa tem uma sobremordida, a pronúncia dos sons ditos labiodentais, que requerem mover o lábio inferior contra os dentes superiores - pense em palavras como "fava" e "febre" - é cerca de 30% mais fácil. Ao longo de milhares de anos, mais sons desse tipo podem ter sido incluídos na linguagem.

Os pesquisadores afirmam que esse cenário é mais provável que improvável, ainda que admitam que ele talvez não ocorra universalmente. "Algumas linguagens desenvolvem sons labiodentais", disse Steven Moran, linguista da Universidade de Zurique. "Outras não".

As constatações desafiam a ideia de que os sons que produzimos estão mais relacionados à evolução humana e à maneira pela qual ela formou nosso cérebro, um assunto do qual o estudo não trata.

Nossos ancestrais hominídeos talvez cozinhassem sua comida, por exemplo, o que a amaciaria. Isso contribuiria para mudanças na forma do crânio e mandíbula, o que por sua vez abriria caminho a um cérebro mais complexo muito tempo antes que a agricultura influenciasse a dieta, disse Jordi Marcé-Nogué, que estuda a evolução mandibular dos primatas, na Universidade de Hamburgo, Alemanha.

"O que veio primeiro?", ele questiona. "As mudanças na fala ou as mudanças no cérebro?"

Ray Jackendoff, linguista da Universidade Tufts que não participou do estudo, disse que a constatação dos pesquisadores de que a facilidade com que alguns sons podem ser produzidos varia de acordo com a dieta "é interessante mas não é uma surpresa". Que diferentes culturas podem ter pronunciado certos sons com mais frequência do que outras culturas "não diz grande coisa sobre a história profunda da linguagem".

Outros fatores sociais e culturais, como a adoção de sons de comunidades vizinhas, também podem ter contribuído para as mudanças na linguagem, os autores do estudo afirmam. Por exemplo, quando grupos de caçadores-coletores e grupos agrários se misturavam, o mesmo acontecia com seus sons.

E outros apontam para o fato de que sons labiodentais foram identificados entre caçadores-coletores com mordidas paralelas, como o povo ianomâmi da América do Sul, que em geral vive isolado, em comunidades de caçadores-coletores, pescadores e horticultores.

Outros linguistas apontam também que o estudo se baseia em suposições não testadas, por exemplo sobre em que medida pequenas mudanças na mordida podem influenciar os sons, os tipos de erros que elas podem produzir, a idade em que os dentes dos caçadores-coletores se desgastam, e a ideia de que agricultura serve como indicador preciso de dieta. O papel dos fatores cognitivos, entre os quais o controle neural dos órgãos da fala, tampouco é levado em conta.

Os autores respondem que não estão minimizando os papéis da cultura, sociedade e cognição no desenvolvimento da linguagem. Mas afirmam que as diferenças físicas entre as pessoas merecem atenção igual, no estudo do desenvolvimento da linguagem humana, à que recebem nas pesquisas sobre os sistemas de comunicação dos animais.

Alguns cientistas se preocupam com a possibilidade de que, caso não sejam conduzidos com extremo cuidado, estudos subsequentes sobre as diferenças físicas ou biológicas da linguagem venham a revigorar crenças etnocêntricas que macularam a linguística no passado, especialmente se as pesquisas foram interpretadas como julgamentos de valor sobre diferentes grupos de linguagens.

"O risco aqui é de um viés quanto a benefícios positivos, ou quanto ao que é ganho pelos indivíduos de sociedades agrárias, em lugar de considerar também os benefícios de que indivíduos de sociedades de caçadores-coletores possam desfrutar", disse Adam Albright, linguista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Albright disse que estudo em questão considerava essas questões, e que esperava que futuras pesquisas nessa área investiguem também que sons podem ter sido deixados de lado na transição para a agricultura.

Bickel concorda: "Será igualmente interessante interpretar que sons podem ter sido perdidos na transição para dietas mais macias".

The New York Times

*Tradução de Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem