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A massa italiana que nasceu no século 15 e até hoje é feita à mão por mulheres

Primeiro registro histórico das lorighittas é de um rei da Espanha

Os primeiros registros das Lorighittas datam do século 15
Os primeiros registros das Lorighittas datam do século 15 - Reda&co/Getty Images
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Descrição de chapéu BBC News Brasil
Michelle Gross

A estrada de Santa Teresa Gallura a Porto Cervo, na costa norte da Sardenha (Itália), tinha curvas tão implacáveis que me faziam lamentar em silêncio o quanto havia bebido na noite anterior de vermentino e mirto —um licor à base de uma erva de mesmo nome, típica da região. A essa altura da viagem, eu não tinha um rumo certo, exceto o de provar a massa feita localmente, queijo pecorino e qualquer comida tipicamente sardenha.

Estava faminta quando me sentei para almoçar no restaurante II Pomodoro, um estabelecimento simples na remota Costa Smeralda, conhecida por servir comida sardenha tradicional. Pedi o prato especial, uma massa artesanal chamada lorighittas em um caldo de frutos do mar.

Poucos minutos depois aparece uma tigela com cachos dourados tão bem trançados que deixariam até Rapunzel impressionada. "Esta massa é especial", disse Agostino Demontis, maître do restaurante Pomodoro, no Hotel Cervo.

A história por trás do nome lorighittas —derivada 'lorigas', palavra sardenha que significa algo parecido com "anel de ferro"— varia dependendo de para quem se pergunta. Demontis é de Segariu, cidade próxima a Morgongiori, onde surgiram as lorighittas; para ele, o nome se refere aos anéis de ferro que eram fixados à parede externa das casas para prender cavalos e bois quando os homens voltavam do campo. Mas há outro significado. Lorighittas também pode ser a palavra sardenha para "orelhas".

"Às vezes as lorighittas eram preparadas por jovens e adolescentes solteiras que penduravam a massa em suas orelhas depois de secá-las sob o sol. [Elas] fingiam que eram joias, já que ninguém tinha acesso a ouro naquela época", contou Demontis.

Não importa aonde se dirija na Sardenha, a paisagem é sempre uma fácil distração. É impossível evitar o feitiço jogado pelas ruínas antigas que surgem ocasionalmente de arbustos desalinhados, ou pelo cenário de ovelhas pastando e vagando pela estrada. Dizem que há mais de 3,5 milhões delas na região idílica e selvagem, que se estende desde por enseadas brilhantes a paisagens rústicas no interior. Ao longo dos séculos, a ilha viveu por vezes isolada, mas sofreu conquistas de praticamente todos seus vizinhos mediterrâneos. Isso influenciou as tradições culinárias e hábitos da região.

Especialidades como a fregola, uma massa arredondada; Malloreddus alla Campidanese, com um formato de concha que quase lembra uma larva; e su filindeu, uma das mais raras tradições de massa no mundo, são algumas das responsáveis por popularizar a massa sardenha. Mas as lorighittas permaneceram relativamente desconhecidas da maioria.

"Ninguém conhece as lorighittas —é um dos segredos bem-guardados da Sardenha", afirmou Efisio Farris, escritor e chef sardenho que vive nos EUA desde 1986. "Quando abri meu restaurante em 1988 em Dallas (Texas), queria oferecer às pessoas a comida com a qual eu cresci. Além de ser um tributo à minha família, é importante preservar essas receitas e histórias".

Há dois anos Farris visitou Morgongiori com sua tia e conheceu duas mulheres que preparavam manualmente as lorighittas. Ele sabia que tinha se deparado com algo que precisava levar para os Estados Unidos.

"Fiquei um pouco preocupado, porque como dá muito trabalho preparar lorighittas (cada trança é feita à mão), e eu teria que cobrar mais por elas…", contou Farris. "Mas as pessoas reconheceram a qualidade e o sabor do prato, e logo ele se tornou um favorito do nosso restaurante".

Situado ao pé do monte Arci, no oeste da Sardenha, o vilarejo de Morgongiori remonta a milhares de anos, desde o período nurágico, entre os anos 900 e 500 a.C. Os primeiros colonos chegaram ao local no século 6º a.C. em busca de obsidiana, uma pedra preciosa de cor preta que se forma a partir das lavas vulcânicas da região. Hoje, a vila de 800 habitantes é talvez conhecida por tapeçarias e artesanato, tradicionalmente feitos em antigos teares horizontais e preservados no Museu Vivo de Arte Têxtil. A segunda atividade manual mais conhecida é a lorighitta, que está ameaçada de extinção, segundo a fundação Slow Food's Ark of Taste.

"Lorighittas são muito valiosas porque corremos o risco de perdê-la totalmente", disse Raimondo Mandis, diretor da organização Slow Food Cagliari, em entrevista por telefone. "Já não restavam nem dez mulheres produtoras manuais de lorighittas, e isso em uma base sazonal".

O primeiro registro histórico das lorighittas data do século 16 de um testemunho que menciona uma massa peculiar com trançado em forma de anel na Sardenha. O relato foi feito pelo rei da Espanha, que na época detinha o controle da maior parte do sul da Itália, incluindo Sardenha, Nápoles e Sicília, e que perguntara sobre as atividades econômicas da ilha.

Tradicionalmente, explicou Mandis, as lorighittas eram preparadas exclusivamente em Morgongiori para a festa anual do Dia de Todos os Santos, em 1º de novembro. "Como em muitas regiões da Itália e especialmente a Sardenha, os costumes e tradições alimentares estão ligadas às aldeias por qualquer que seja o motivo, desde religioso a reuniões familiares para almoços de domingo", disse ele.

FÁBULAS SOBRE A MASSA

Uma fábula popular contada às crianças de Morgongiori narra a saga de Maria Pungi Pungi. Armada com uma forquilha, a personagem que parecia uma bruxa voava sobre as casas na noite de Todos os Santos e furava a barriga de crianças que tinham comido muitas lorighittas, para que a massa caísse do estômago.

Por séculos a cultura camponesa da Sardenha ditou como dever da mulher o de preparar a comida enquanto o homem se ocupava no campo. Por isso era comum que pratos como esse fossem feitos principalmente por mulheres, explicou Mandis.

"O nome lorighittas remete à ideia de pequenas orelhas", diz Mandis. "Mas sua forma tem relação com a aliança de casamento, preciosamente feita por mãos femininas, tradicionalmente transmitidas pelas mulheres da família de mãe para filha".

Ainda existe discussão sobre se as lorighittas eram feitas exclusivamente pelas mulheres solteiras do vilarejo na esperança de encontrar um marido, mas isso não seria difícil de acreditar dada às histórias locais de superstições relacionadas à comida e ao matrimônio.

"Há muitas tradições na Sardenha relacionando comida e casamento", reforça Mandis. "No caso das lorighittas, há a ideia de que, enquanto as jovens solteiras esperavam ansiosamente por um anel de noivado, elas se contentariam com um anel de massa da cozinha de suas mães e avós".

Inspirada pelas histórias que ouvi, voltei da Sardenha determinada a preparar as lorighittas do zero. A receita requer apenas três ingredientes: farinha de semolina de grão duro (um trigo típico dos campos da Sardenha), água morna e sal. Logo, pensei que provavelmente seria fácil.

"Na minha opinião, a parte difícil não é aprender como preparar as lorighittas, mas ter a destreza necessária para moldá-las", admitiu Francesca Turnu, vereadora de Morgongiori. "Essa é uma tradição culinária que está viva (na cidade) porque as mulheres de Morgongiori continuam a prepará-la manualmente até hoje".

Que se dane a destreza, pensei, quando comecei a massagear furiosamente a massa que se transformaria nos pequenos cachos que deixariam as mulheres de Morgongiori orgulhosas. Depois de uma hora amassando e enrolando a massa em filetes de bucatinis, chegou a hora do verdadeiro desafio. Peguei uma longa tira de massa, dei duas voltas entre o indicador e o polegar e comecei a trançá-la com delicadeza.

GERAÇÃO DE MULHERES

As mulheres em Morgongiori ainda seguem a mesma técnica de centenas de anos. Elas amassam a mistura por no mínimo 30 minutos, geralmente muito mais, ocasionalmente pingando água salgada até que ela fique maleável. Assim que a massa está pronta e os pedaços de lorighittas são trançados, eles são deixados em um cesto de bambu para secar. Essa é uma boa hora para começar a preparar o molho.

Em Morgongiori, o ragu típico inclui frango ou pombo (uma espécie apropriada para o consumo), cebola, alho, salsinha, vinho branco e polpa de tomate (tomato passata). Depois de cozinhar as lorighittas (por menos de três minutos), elas são revestidas pelo ragu e queijo pecorino fresco.

Parece bem fácil, mas quatro horas e menos de dez peças de lorighittas depois, acabei desistindo. Talvez elas não tenham saído como planejado porque sou casada e vivo em um apartamento de um quarto em Jersey, nos EUA —ou talvez eu precise de mais alguns séculos de prática.

Cada vilarejo da Sardenha tem suas receitas tradicionais que utilizam produtos locais. "O clima muda bastante na parte central e mais montanhosa da ilha, onde o pastoreio é predominante", disse Carole Counihan, professora emérita de antropologia da Universidade de Millersville, nos EUA, e professora visitante da Universidade de Cagliari, na Sardenha.

"Todo mundo tem quintais com vegetais, o pastoreio de ovelhas é dominante nas regiões montanhosas centrais, enquanto que a pesca é mais importante nas regiões costeiras, então há muita variação na dieta".

Counihan, que estuda a dieta sardenha e o ativismo de tradições alimentares, explicou que a partir dos anos 1980, com a introdução dos supermercados, alguns hábitos alimentares tradicionais sardenhos foram se perdendo.

"A Sardenha tem mais metros quadrados de supermercados do que qualquer outra região da Itália, e muitas pessoas que entrevistei contaram que, quando crianças, se abasteciam principalmente de pastores e agricultores locais", disse Counihan.

"Houve um declínio dessas práticas, que agora estão sendo resgatadas. Há uma ressurgência de jovens agricultores voltando para o campo com novas maneiras e novos modelos de apoio ao movimento de comida local que está começando a tomar forma".

BBC News Brasil
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