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Viva Bem
Descrição de chapéu The New York Times machismo

A confiança é o segredo do sucesso para as mulheres? Não exatamente

Livro desafia ideia vendida às mulheres de que a autoestima as libertará

Shani Orgad (à esquerda) e Rosalind Gill, autoras do livro “Cultura da Confiança” Suzie Howell - 29.jan.22/The New York Times

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Valeriya Safronova
The New York Times

Diversos anos atrás, Shani Orgad e Rosalind Gill perceberam que uma mensagem comum estava sendo enviada às mulheres por meio da publicidade, livros de autoajuda, música e outras formas de mídia: a solução para todos os problemas que elas pudessem ter estava em serem mais confiantes.

"Sempre que ouvíamos um político, um líder empresarial ou um executivo de uma marca qualquer falando sobre desigualdade, o próximo passo imediatamente seria a pessoa falar sobre a confiança das mulheres", disse Gill, professora de análise social e cultural da City University of London.

Ela e Orgad, professora de mídia e comunicações na London School of Economics and Political Science, começaram a manter uma "cesta da confiança". "Nós recortávamos coisas de revistas, jornais", disse Orgad. "Observávamos gêneros específicos de mídia nos quais essas exortações pareciam ser especialmente proeminentes: publicidade, apps, mas também o setor de autoajuda".

Com o tempo, disse Gill, elas compreenderam que "desigualdades estavam sendo explicadas e minimizadas como resultado dessa característica psicológica da confiança".

A pesquisa das duas foi destilada em "Confidence Culture" ("Cultura da Confiança"), uma crítica cultural feminista que sai pela Duke University Press no dia 9 de fevereiro. O livro destroça a ideia de que os desafios que as mulheres enfrentam no trabalho, sexo, relacionamentos e criação de filhos podem ser reduzidos a problemas de autoestima, em lugar de resultarem de estruturas sociais.

Na entrevista abaixo, conduzida em vídeo e editada, Orgad e Gill discutem suas constatações.

Vamos esclarecer uma coisa. Nesse livro, sua crítica não se dirige à confiança como traço geral, mas à cultura da confiança, ou, como vocês descrevem no livro, ao "culto da confiança". Vocês podem explicar a diferença?
Orgad:
Nossa crítica é à cultura que coloca a culpa nas mulheres repetidamente e lhes diz que o problema está em sua psique, em seu corpo, em seu comportamento e em seu pensamento. Não estamos argumentando contra a confiança. É uma coisa maravilhosa que as mulheres sejam mais confiantes.

Gill: A cultura da confiança permite que instituições, organizações e estruturas mais amplas escapem às suas responsabilidades, porque, se as mulheres são responsáveis, então na verdade não precisamos promover mudanças fundamentais.

O que quer dizer marketing "ame seu corpo"?
Gill:
O marketing "ame seu corpo" foi uma grande inovação quando surgiu. Marcas como Dove, Nike e L’Oréal estiveram entre as primeiras a realizar essa transição e deixar de comercializar produtos para mulheres com base nas inseguranças delas.

Houve muitas críticas a essa forma de comunicação, não só na academia, mas na cultura popular, críticas à falsidade da prática –o uso de pessoas que não são modelos, mas se parecem incrivelmente com modelos, ou o recurso a técnicas como Photoshop e filtros. Também houve exemplos realmente gritantes de racismo.

Nós criticamos a maneira pela qual esse tipo de publicidade tende a trivializar as pressões que as mulheres tendem a sofrer com relação aos seus corpos. A publicidade mostra aquela dor e sofrimento, mas em seguida atribui a culpa às mulheres como se a responsabilidade pela dor estivesse na cabeça das mulheres. Se elas simplesmente se aprumarem mais e demonstrarem um pouquinho mais de confiança, o problema logo desaparecerá.

Há um exemplo que vocês oferecem no livro de um comercial da Dove chamado "Adesivos".
Gill:
Mulheres vão a um falso laboratório para participar de um experimento. Elas recebem um adesivo de beleza como um adesivo de nicotina ou hormônio e são instruídas a usá-lo por duas semanas e a gravar um diário em vídeo.

No fim, é claro, elas voltam todas se sentindo muito melhores sobre sua aparência, mais confiantes, mais confortáveis consigo mesmas. E aí surge a revelação de que na verdade não havia coisa alguma no adesivo.

Parece uma história altamente tóxica em se tratando de um comercial, porque coloca toda a responsabilidade pela natureza dolorosa e injuriosa de nossa cultura da beleza sobre as mulheres.

Em lugar de reduzir a pressão sobre as mulheres, todas essas mensagens aparentemente empoderadoras e de reforço da confiança na verdade só a ampliam, porque o requisito de ter uma boa aparência, de parecer jovem, de parecer bonita, de ter uma ótima pele, cabelo, corpo e dentes, não desapareceu.

E agora há a pressão adicional de ser confiante, de se sentir confortável em sua própria pele. Não poder falar sobre as inseguranças que elas sentem produz um disciplinamento psíquico das mulheres.

As mulheres do vídeo da Dove experimentam a dor relacionada às suas inseguranças diante da câmera e são informadas de que é possível superá-las se acreditarem em si mesmas ou usarem produtos Dove. No livro, vocês descrevem uma tendência de mulheres poderosas falarem em público sobre suas inseguranças, e de que maneira isso se vincula à cultura da confiança.
Orgad:
Elas falam de vulnerabilidades, mas não das questões sistêmicas que fazem com que algumas pessoas sejam mais vulneráveis do que outras. Se você está em posição de ir à mídia social e confessar suas vulnerabilidades, é provável que só possa falar a respeito porque o assunto ficou seguramente no passado.

É algo exclusivo das pessoas que estão no poder. Para a maioria dos demais, que são muito menos privilegiados, continua a ser problemático e perigoso mostrar uma vulnerabilidade que pode lhes custar seus empregos. Isso pode ter um imenso custo emocional.

Em que as mensagens sobre confiança dirigidas aos homens diferem das dirigidas às mulheres?
Gill:
As mensagens de confiança dirigidas aos homens são muito mais sobre as manifestações externas de confiança. Falam de desempenho, sucesso e realização. Para os homens, o ponto é conquistar mais mulheres, melhorar no trabalho, subir a escada de alguma maneira, mas a premissa não é a ideia de que eles têm um déficit de confiança de alguma maneira ligado à desigualdade.

A cultura da confiança pode se expressar como feminista?
Orgad:
As versões do feminismo que a cultura da confiança emprega são altamente individualistas e diferem do feminismo como movimento político.

Mantras como ‘a falta de confiança é que te impede de subir’ ou ‘você mesma é sua pior inimiga’ exemplificam como uma versão muito específica do feminismo se tornou popular e leva as mulheres a empreender um trabalho muito intensivo de melhoria pessoal, que abarca de sua aparência aos sentimentos, formas de comunicação e ocupação de espaço.

É uma versão otimista e positiva do feminismo. Celebra as realizações da mulher, o que é ótimo, mas, de uma maneira realmente perturbadora, desconsidera os sentimentos que propeliram o feminismo por décadas: raiva, desapontamento, ira, crítica. Esses sentimentos agora são caracterizados como negativos e venenosos.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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