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'Me redescobri com o cosplay': A diarista que enfrentou depressão e relação abusiva se fantasiando

Solange caracterizada como a personagem Vovó, do desenho "Piu Piu e Frajola", seu primeiro cosplay
Solange caracterizada como a personagem Vovó, do desenho "Piu Piu e Frajola", seu primeiro cosplay - BBC News Brasil/Jéssica Nascimento
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Descrição de chapéu BBC News Brasil
Vinicius Lemos
Cuiabá

Na plateia do evento de cosplay em Manaus (AM), o público ovacionava a Vovó, da animação "Piu Piu e Frajola". Era setembro de 2015. Por trás da personagem, estava Solange Amorim, caracterizada pela primeira vez como um personagem de desenho animado. Incrédula com a reação positiva no local, ela se emocionou no palco. "Não imaginava que fossem gostar de mim." 
 
A caracterização de Solange foi escolhida como a melhor do evento de cosplay –hobby no qual a pessoa se fantasia e performa conforme um personagem. Além da medalha, ela também conquistou algo que foi fundamental para a sua vida a partir de então: a autoconfiança.

Horas antes de chegar ao evento, Solange estava em dúvida se deveria sair de casa fantasiada. "Nunca tinha feito isso. Tinha medo de ser ridicularizada, por causa da minha idade", diz a mulher, com 48 anos à época.

O temor dos julgamentos alheios era alimentado pela baixa autoestima e pela depressão, condições que surgiram, segundo ela, durante um relacionamento abusivo que viveu por mais de duas décadas. "Essas minhas dificuldades surgiram no meu casamento. Fui muito maltratada, sabe? Ele chegou a me bater. Olhava para mim e dizia que eu nunca iria arranjar ninguém para ficar comigo, porque falava que eu era gorda e feia. Então, isso sempre entrou na minha cabeça como verdade. Por isso, não gostava de me olhar."
 
Solange relata que denunciou o ex-marido por agressão. Hoje, ela é divorciada e afirma que o casamento é um passado que evita relembrar. "Não temos mais contato. Ele mantém boa relação com meus filhos. Sempre foi um ótimo pai, mas como marido não foi bom."
 
Por uma década, ela trabalhou como operária em uma empresa do Distrito Industrial de Manaus. Após ser demitida, se tornou diarista. "Trabalho duas ou três vezes por semana. Se surgir serviço até em dia de domingo, vou."

REFÚGIO NOS FILHOS

Depois da separação, ela buscou refúgio nos filhos. Uma das atividades preferidas dela era ajudar a caçula a se transformar em figuras de filmes ou animação, por meio do cosplay. "Eu ficava pesquisando sobre personagens nos quais ela poderia se transformar. Ficava mais preocupada que ela. Ajudava a montar as roupas e os acessórios."
 
Em um dos eventos no qual acompanhou a caçula, ela decidiu se tornar uma cosplayer –termo utilizado para denominar os adeptos do cosplay. "Uma amiga me desafiou a me transformar em algum personagem. Ela disse que iria pagar a roupa que eu quisesse. A princípio, não levei a sério, mas depois aceitei o desafio."
 
A ideia de se tornar outra pessoa por meio de roupas, acessórios e maquiagens encantou Solange. A partir dali, ela afirma ter se redescoberto. "Quando eu peguei a medalha nesse primeiro evento em que participei, chorei muito. Cheguei em casa, me olhei no espelho e me perguntei por que me achava feia? Por que não conseguia me aceitar? E a partir dali passei a lidar melhor com a minha própria imagem."
 
Doutora em Comunicação, Mônica Rebecca Ferrari fez diversas pesquisas sobre o mundo do cosplay. Em seus estudos, constatou que a prática costuma trazer a sensação de reconhecimento social a seus praticantes.

"Muitos se sentem legitimados por meio do cosplay. Há jovens mais pobres que se transformam em personagens porque acreditam que assim se sentirão mais respeitados. O cosplay também é uma estratégia de visibilidade social", diz. "Além disso, há também o fato de se tornar outra pessoa por um dia, como ser uma princesa ou outro personagem com o qual o cosplayer tenha uma vinculação afetiva."

O COSPLAY

Os desenhos animados fazem parte da vida de Solange desde a infância dos três filhos dela –hoje com 20, 27 e 34 anos. "Eu gravava os desenhos que passavam na televisão, para que eles pudessem assistir quando voltassem da escola. Então, eu acabava assistindo também."
 
A filha caçula de Solange se tornou cosplayer na adolescência. Na época, a mãe da garota não conhecia a prática, mas logo se encantou e se tornou a maior incentivadora da jovem. Por quatro anos, Jéssica Nascimento, 20, se transformou em diferentes personagens, mas abandonou o hobby após se casar. 
 
Hoje, Jéssica é figura fundamental nas caracterizações da mãe. "Conversei muitas vezes com ela, para incentivá-la, porque ela ficava tímida em meio a tantos jovens."  O medo sobre os comentários que ouviria a acompanhou até a porta do primeiro evento em que participou. Mas logo depois de entrar o temor deu lugar à alegria.

"Eu me senti como a maior popstar. As pessoas correram atrás de mim para tirar fotos e conversar comigo. Aquilo tudo me encheu de uma coragem muito grande." Solange passou a ser conhecida no meio como Tia Sol. 
 
Em dezembro de 2015, a segunda personagem feita por ela viralizou nas redes sociais: a simpática Muriel Bagge, do desenho "Coragem, o cão covarde". A imagem da velhinha da animação dos anos 90 repercutiu em diversos países.  
 
Agora, ela gasta com roupas e acessórios entre R$ 70 a R$ 580 em cada caracterização. Quando o dinheiro está curto, ela demora meses até terminar o cosplay. "Vou comprando cada peça aos poucos, conforme minha renda. Nunca deixei de cumprir minhas obrigações financeiras por causa do cosplay", diz.
 
O hobby não lhe rende cachês, mas recebe diversos convites com passagens e hospedagens, além de medalhas pelas fantasias que escolhe. Nos últimos anos, Tia Sol fez mais de 25 cosplays. Ela já foi personagens como Rita Repulsa, da franquia "Power Rangers"; Bruxa Onilda, do desenho "As Trigêmeas"; Yubaba, da animação "As Viagens de Chihiro"; e até o Mestre dos Magos, do desenho "Caverna do Dragão".
 
No Facebook, a página dela tem mais de 100 mil seguidores.

A LUTA CONTRA A DEPRESSÃO

Para Solange, a maior recompensa trazida pelo cosplay foi a autoestima que conquistou. Ela relata que a possibilidade de se transformar em diferentes personagens a ajudou intensamente na luta contra a depressão, que enfrenta desde que surgiram os problemas em seu casamento. "Antes, eu não queria sair de casa para nada. Era uma situação muito complicada. Hoje, saio, tiro fotos e me sinto muito bem."
 
Anos atrás, antes de se tornar cosplayer, ela fez tratamento com remédios contra a depressão, mas logo abandonou. "Não me senti bem com a medicação", justifica. Atualmente, afirma que não sente mais necessidade de se medicar. "Costumo dizer que o cosplay me tirou da depressão."
 
O psiquiatra Jorge Augusto Silveira diz que a descoberta de pontos que proporcionem prazer representa importante ajuda no tratamento da depressão - que atinge cerca de 11,5 milhões de pessoas no Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). 
 
"Introduzir essas atividades prazerosas, respeitando o limite de cada indivíduo, faz com que ele tenha experiências gratificantes e positivas novamente. Aos poucos, volta a experimentar sensações agradáveis e a se comunicar com o mundo de modo menos hostil e mais harmônico", ressalta. "Do ponto de vista neuroquímico, essas práticas favorecem a liberação de neurotransmissores que, em pessoas deprimidas, estão diminuídos, como a serotonina e a noradrenalina", completa.
 
Em alguns casos, principalmente nos quadros de depressão leve ou moderada, as atividades podem substituir o uso de medicamentos. "Todavia, o tratamento para a depressão é sempre amplo e individualizado", diz Silveira, que ressalta a importância da busca por ajuda médica para definir o melhor tratamento para cada paciente. "Por meio da entrevista médica, é possível identificar, junto com o paciente, quais atividades podem trazer prazer e fazer bem."

BBC News Brasil
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