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A comunidade mexicana onde há três gêneros

Na região de Istmo de Tehuantepec, no Estado de Oaxaca, no sul do México, existem três gêneros: feminino, masculino e muxes
Na região de Istmo de Tehuantepec, no Estado de Oaxaca, no sul do México, existem três gêneros: feminino, masculino e muxes - BBC News Brasil/Zofia Radzikowska
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Ola Synowiec

"Qual tratamento você prefere: feminino ou masculino?", perguntei a Lukas Avendaño, que vestia calças durante o dia, mas à noite usava uma tradicional anágua preta com flores bordadas. Conversávamos em espanhol, que, assim como o português, distingue o gênero de substantivos e pronomes.
"Prefiro que me chame de 'meu amor'", respondeu, sorrindo.

Na região de Istmo de Tehuantepec, no Estado mexicano de Oaxaca, há três gêneros: feminino, masculino e muxes. Essa terceira classificação é reconhecida e celebrada desde os tempos pré-hispânicos. E nessa região onde a maioria das pessoas fala a língua indígena zapoteca, minha pergunta fazia pouco sentido.
"Em zapoteca, assim como no inglês, não há gênero gramatical. Há apenas uma forma para todas as pessoas. Por isso muxes nunca tiveram de se perguntar se são mais homem ou mais mulher", acrescentou Avendaño.

"Somos o terceiro sexo", completou Felina, que, diferentemente de Avendaño, trocou seu nome de batismo masculino, Ángel, pelo apelido. "Há homens e mulheres, e há algo no meio, que sou eu."

Eu participava da Vela de Las Intrepidas, uma celebração anual de muxes, realizada a cada novembro em Juchitán de Zaragoza, uma pequena cidade em Istmo de Tehuantepec. Notava que seus estilos eram bem diversificados.

Havia muxes que, como as tehuanas (mulheres de Istmo de Tehuantepec), vestiam a mesma roupa ricamente bordada inspirada no visual de Frida Kahlo. Outras usavam vestidos de estilo ocidental ou se apresentavam como drag queen. E havia ainda aquelas com roupas masculinas, mostrando seu status apenas com uma maquiagem simples e as unhas pintadas.

"É difícil descrever quem é muxe. É basicamente qualquer pessoa que nasceu homem mas não age como tal", afirmou Avendaño.

"O que conhecemos, 'sob os olhos ocidentais', como 'travesti masculino para feminino', 'transexual masculino para feminino', 'gay afeminado' ou 'gay masculino' parece estar incluído na categoria de 'muxe', desde que haja também um forte componente de identidade étnica", escreveu o antropólogo Pablo Céspedes Vargas no artigo Muxes at work: between community belonging and heteronormativity in the workplace ("Muxes no trabalho: entre o pertencimento de comunidade e a heteronormatividade no espaço de trabalho", em tradução livre).

De maneira similar, Avendaño enfatizou que 'muxe' é um termo zapotec e que não pode ser entendido sem se compreender sua cultura. Isso porque o conceito de muxe existe apenas em Istmo de Tehuantepec, onde são parte importante da comunidade. A lenda diz que caíram do bolso de Vicente Ferrer, o santo padroeiro de Juchitán, quando ele passou pela cidade, o que significa que nasceram com sorte.

Uma segunda versão diz que Vicente Ferrer carregava três bolsas: uma com sementes femininas, outra com sementes masculinas e a última onde as duas estavam misturadas. A terceira bolsa teria vazado em Juchitán, razão por que há tantas muxes.

"Não é verdade que existem mais muxes aqui. Elas simplesmente são mais respeitadas, então podem ficar mais visíveis", afirmou Fernando Noé Díaz, professor do ensino básico que tem muitas amigas muxes.

Respeito a muxes

Uma delas se chama Kika (ela também usa apenas seu primeiro nome) e nos convidou para a celebração daquela noite. Lá, cada muxe tinha uma seção com mesas e decorações onde comidas e bebidas eram servidas aos convidados.

"Acho que as muxes são respeitadas porque são mais um gênero social do que sexual. Elas têm um papel importante na comunidade", acrescentou Noé Díaz. Juchitán é conhecida no México por suas mulheres fortes e orgulhosas. Alguns a conhecem com a cidade do matriarcado, o que não está necessariamente correto, mas são as mulheres que tradicionalmente lidam com o dinheiro, levado para casa pelos homens.

As mulheres, enquanto isso, geralmente vendem o que os homens produzem, e o mercado está sob seu domínio. Hoje à noite, como é da tradição da vela, as mulheres doam dinheiro de presente, enquanto os homens trazem engradados de cerveja.

"Quando o homem está no mar ou no campo, e a mulher no mercado, não há ninguém para tomar conta do trabalho doméstico e da família. É aí que entram as muxes", explicou Noé Díaz. "Alguns dizem até que é uma benção para a mãe ter uma filha muxe para ajudá-la em casa e tomar conta dos irmãos mais novos. Além disso, elas não podiam ter relacionamentos de longo prazo ou se casar, então tinham que ficar com suas mães quando envelheciam."

Na festa, as mães das muxes são as que servem comida em cada mesa. A mãe de Kika se certificava de que ninguém ficasse com fome, enquanto os membros mais jovens da família traziam uma nova garrafa de cerveja quando a minha começava a esvaziar.

Rituais sociais

Kika não quer se dedicar ao trabalho doméstico, como é uma das tradicionais funções da muxe, juntamente com trabalhos manuais e vendas no mercado. Por isso, ela é dona de um salão de beleza no centro da cidade. O mesmo ocorre com Felina, que gerencia um grupo de muxes, Las Auténticas Intrepidas Buscadoras del Peligro –as organizadoras do evento daquela noite.

De acordo com Noé Díaz, boa parte do trabalho da muxe é preparar as festas tradicionais, que são uma grande parte da economia local. Elas fazem fantasias e ornamentos para as "velas", batismos, comunhões, festa de debutantes e casamentos. Noé Díaz também conhece muxes que fazem arte e trabalhos manuais para vender nos mercados. Outra amiga muxe é professora da escola básica.

Avendaño é atriz e diretora, e viaja o mundo com seu show sobre o que é ser muxe, Réquiem para un Alcaraván. O espetáculo coloca muita ênfase na parte católica da identidade muxe. "As muxes sempre tiveram um papel importante na Igreja Católica. Era seu trabalho preparar as decorações da igreja. Em Tehuantepec, minha cidade natal, elas têm sua própria irmandade na igreja", disse Avendaño, explicando que a Igreja Católica sabiamente acomodou a tradição dos três gêneros, que é tão forte e enraizada na cultura local.

A celebração das muxes começou com uma missa em sua honra na igreja Vicente Ferrer. "Deus criou a mulher e o homem, mas também criou a natureza humana, e - por favor me perdoe, Deus, se te ofendo - é possível que a natureza criada por ele tenha decidido quem são os humanos. Entre essas pessoas, há homossexuais, e isso é totalmente natural", disse 'Padre Panchito', como o pároco Arturo Francisco Herrera González é apelidado, enquanto fazia sua homilia. "Deus nos criou à sua imagem, mas cada um de nós é único. Não há dois indivíduos idênticos e temos de respeitar isso."

Depois da missa, uma procissão seguiu pelas ruas da cidade. Uma multidão colorida foi liderada por uma banda e por muxes segurando velas. Atrás da procissão, outras muxes dirigiram carros e caminhões decorados com flores, balões e papéis decorativos.

Mas o destaque foi a festa realizada à noite fora da cidade, com três palcos e grandes alto-falantes. Havia muitas pessoas: mulheres, homens e crianças. Todos vestiam trajes regionais: as mulheres em anáguas e blusas bordadas chamadas huipiles; e os homens tinham camisas brancas do tipo guayabera.

O público recebia as boas-vindas de uma muxe no palco –'la mayordomo' deste ano, a organizadora principal, acompanhada por seu parceiro, o mayate. Mayates são homens que têm relações sexuais com muxes, mas que não são muxes e não são considerados gays.

"A sociedade zapoteca como um todo não interpreta um homem que tem relações com uma muxe como homossexual; seu status hétero não é questionado", escreveu Marinella Miano Borruso em um artigo. "Apenas a relação sexual entre uma muxe e um homem heterossexual faz sentido. Relações entre muxes ou entre uma muxe e um gay não fazem sentido. Na realidade, são inconcebíveis. Nenhuma muxe dormiria com um homem que se considera gay."

Portanto, muxes não são necessariamente homossexuais. Podem ser heterossexuais, bissexuais ou assexuais. "Ser muxe não depende da orientação sexual. É um gênero cultural, uma função social e uma identidade, mas não uma característica do desejo de alguém", explica Miano Borruso, em seu livro Hombre, mujer y muxe en el Istmo de Tehuantepec (Homem, mulher e muxe no Istmo de Tehuantepec, em tradução livre).

No evento da vela, todas as muxes com quem conversei se consideram homossexuais ou uma mulher nascida no corpo de um homem. Alguns fazem terapia hormonal e colocam implantes de silicone. Durante o concurso anual Rainha das Muxes, que faz parte da vela, percebi que muitas tinham seios artificiais. "Isto é algo novo. Seios falsos não fazem a muxe mais muxe", comentou Noé Díaz.

Os muxes também se envolveram em lutas pelos direitos LGBT. Amaranta Gómez Regalado, muxe de Juchitán, foi candidata ao Congresso mexicano. Embora não tenha sido eleita, ela se tornou conhecida como a primeira candidata muxe do México. Ela continua o ativismo em campanhas contra a homofobia e a prevenção do HIV.

"Em vez de dedicar suas vidas ao bordado, trabalho manual ou ao comércio, cada vez mais nós estamos concluindo o ensino superior", disse Felina. "Se nós, as filhas de São Vicente, não lutarmos por nossos direitos, quem vai?"

Ainda assim, os mexicanos são ambivalentes em relação aos homossexuais. Por um lado, a Cidade do México foi a primeira capital latino-americana a legalizar o casamento do mesmo sexo. Mas o México também sofre com uma das mais altas taxas de crimes contra a comunidade LGBT no mundo, com 202 pessoas assassinadas entre janeiro de 2014 a dezembro de 2016 - o que representa um em cada três dias.

Para os mexicanos e a comunidade gay internacional, Juchitán se tornou um paraíso queer e um símbolo de tolerância. Embora alguns locais ainda discriminem as muxes, e a comunidade muxe como um todo tenha menos oportunidades de emprego e estudo, a divisão tradicional indígena dos três gêneros como uma forma natural e tradicional de ser inspirou a cena LGBT ao redor do mundo –e as muxes estão atentas a isso.

"Dedicamos esta noite não apenas às muxes", ouço do palco. "Também é a noite de todos os homossexuais, não apenas aqueles do Estado de Oaxaca, mas todos os gays ao redor do mundo. Juchitán está aberto a todos vocês".

BBC News Brasil
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