'Passaporte para Liberdade': Por que historiadores dizem que Aracy de Carvalho não foi heroína que série da Globo mostra
A série "Passaporte para Liberdade", da TV Globo, conta a "história real e extraordinária da brasileira que salvou centenas de vidas durante a Segunda Guerra Mundial". A brasileira em questão é Aracy de Carvalho (1908-2011), que trabalhou no consulado do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, durante o regime nazista.
Aracy teria burlado regras para dar vistos brasileiros a judeus alemães que tentavam escapar do país. Mas o historiador Fábio Koifman diz à BBC News Brasil que isso é um mito.
Ele e o historiador Rui Afonso, dois pesquisadores com mais de 20 anos de experiência nessa área, investigaram os vistos concedidos a alemães no consulado de Hamburgo entre 1938 e 1939. "As evidências mostram que não havia heroína nenhuma nesta história", afirma Koifman.
JUSTA
Aracy de Carvalho foi homenageada em 1982 por Israel como Justa entre as Nações. O título é dado pelo país a não judeus que se arriscaram para salvar judeus da perseguição pelo regime de Adolf Hitler.
No Brasil, só ela e o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas receberam a homenagem —Aracy foi a primeira. Koifman biografou a vida de Dantas e colaborou com seu reconhecimento.
A reputação de Aracy foi tema nos últimos anos de dois documentários —"Outro Sertão" (2013) e "Esse Viver Ninguém Me Tira" (2014) — e do livro "Justa ‒ Aracy de Carvalho e o Resgate de Judeus: Trocando a Alemanha Nazista pelo Brasil" (2011), no qual a série da Globo foi livremente baseada.
Mas Koifman pontua que as mais de 35 mil imagens de documentos e as informações reunidas por ele e Afonso não corroboram com a imagem do Anjo de Hamburgo, como alguns se referem a Aracy por seu suposto heroísmo.
A Globo diz, sua vez, ter várias evidências desse heroísmo com base em uma pesquisa própria e que indicam que "estamos diante de uma grande personagem que merece ter sua história contada e que é reconhecida mundialmente" por isso.
EXCEPCIONAL?
Koifmam e Afonso apresentam seus argumentos em um artigo publicado no livro "Judeus no Brasil: História e Historiografia" (2021). O primeiro é que nenhum dos vistos concedidos pelo consulado de Hamburgo a judeus alemães naquele período foi irregular, falsificado ou forjado, segundo os pesquisadores.
Todos teriam seguido as regras da época e sido autorizados pelo cônsul geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro, ou seu cônsul-adjunto, o escritor João Guimarães Rosa, com quem Aracy se casaria depois. Os dois se conheceram no próprio consulado, onde ela era chefe do setor de passaportes.
À época, o governo brasileiro havia decidido barrar a imigração de judeus estrangeiros. A concessão de vistos permanentes foi suspensa, a não ser por exceções para quem podia depositar uma certa quantia no Banco do Brasil, tinha conhecimento técnico ou profissional relevante ou era uma pessoa notória na sociedade.
Aracy teria ajudado várias pessoas que não se encaixavam nisso ao dar vistos temporários, de turismo, para elas. Mas Koifman e Afonso argumentam que ela não fez nada de errado —a concessão desses vistos era permitida e só foi interrompida em junho de 1939, três meses depois do último visto de turismo concedido no consulado de Hamburgo a judeus.
Além disso, eles ressaltam que todos os vistos foram devidamente informados depois pelo consulado ao governo brasileiro. Em nenhum teria sido ocultado que foram dados a judeus. Se houvesse alguma irregularidade, dizem os historiadores, o governo teria notado e cobrado explicações, e não há sinais de que isso aconteceu, de acordo com eles.
Também não há notícias de que alguém que tenha recebido um visto em Hamburgo tenha enfrentado problemas ao desembarcar no Brasil, afirmam. Por isso, Koifman e Afonso sustentam que nada de excepcional aconteceu no consulado onde Aracy trabalhava.
"Houve uma boa vontade ou outro motivo para a concessão dos vistos? Pode se dizer que sim, mas não há indícios de algo além disso", destacam.
VERSÕES
Koifman conta que uma das versões sobre esse caso diz que Aracy conseguia tirar a letra "J" que aparecia em destaque nos passaportes de judeus para identificá-los. "Mas todos os passaportes tinham J."
"Outra versão diz que ela colocava os pedidos de vistos no meio dos papéis para o cônsul assinar sem ler, mas isso é absolutamente impossível", acrescenta Koifman.
Quem diz isso não sabe muito bem como funciona a burocracia diplomática, afirma o historiador. "O cônsul nunca assinaria algo sem ler. E não é um único documento, são vários. Seria mais crível se dissessem que ela falsificou assinaturas."
ARRISCADO?
Outro argumento dos historiadores é que os consulados brasileiros de outras cidades portuárias da Europa, como Marselha, na França, e Antuérpia, na Bélgica, emitiram tantos ou mais vistos de turistas para judeus na mesma época.
Consulados de cidades portuárias costumavam ser mais movimentados, explicam eles, porque delas partiam os navios para outros países e continentes, e era ali que os vistos costumavam ser pedidos.
Mas aquele final da década de 1930 foi especialmente agitado. A intensa violência contra judeus na Noite dos Cristais, entre 9 e 10 de novembro de 1938, tinha deixado claro que era preciso fugir da Alemanha.
O governo alemão queria expulsar os judeus do país e tentava fazê-los sair por conta própria. As fronteiras só se fecharam para os judeus em outubro de 1941, diz Koifman. "Depois disso, Aracy poderia ter sido morta [por ajudar judeus], mas antes, não."
Para o historiador, a brasileira não correu qualquer risco grave. "Os alemães estavam interessados que os judeus saíssem, então, quem agisse neste sentido seria visto com bons olhos. E ela não tinha dificuldade de relacionamento com os alemães, quem tinha era o Guimarães Rosa", afirma.
Koifman também diz ter encontrado inconsistências nos depoimentos e documentos de pessoas que teriam sido salvas por Aracy.
"As pessoas estavam assustadas, foram ao consulado, uma pessoa que falava alemão as recebeu com educação e encaminhou seu pedido. Depois, aconteceu o Holocausto e elas entenderam que aquele visto salvou a vida delas. É natural que eles sejam gratos a ela", pontua Koifman.
'EU AVISEI A GLOBO'
O historiador diz ter compartilhado seus achados com profissionais envolvidos na série da Globo. "Eu fiquei pensando: 'Eles vão entrar nessa furada?'. Não podia me omitir. Mas eles continuaram a tocar o barco, lamentavelmente", afirma Koifman.
A BBC News Brasil questionou a Globo sobre os contatos feitos com Koifman, mas a emissora não respondeu à pergunta sobre esse assunto.
A Globo também negou que tenha trocado o título da nova série, que foi anunciado originalmente como Anjo de Hamburgo, por causa da pesquisa de Koifman e Afonso. A emissora disse ainda que "respeita o ponto de vista" dos dois historiadores e ressaltou que o programa é uma obra de ficção baseada em fatos reais.
"Além disso, contamos com uma equipe de pesquisa qualificada, que trabalhou por mais de três anos no projeto, reunindo registros históricos, documentos, publicações e materiais em vídeo disponíveis em museus e acervos respeitados pelo mundo. Ainda foram entrevistados historiadores, diplomatas de carreira, familiares de judeus salvos por Aracy —cujos depoimentos exibiremos ao final dos capítulos— e parentes dela."
OS PRÓXIMOS CAPÍTULOS
Os produtores da série também já defenderam sua versão da história em outras entrevistas à imprensa dizendo que o título de justa conferido pelo Memorial do Holocausto a Aracy invalida o que sustentam Koifman e Afonso.
Koifman argumenta que novos documentos encontrados por ele e Afonso em sua pesquisa não foram analisados na época da homenagem, que foi feita com base em quatro depoimentos e uma carta.
O historiador diz que houve um esforço para que Aracy de Carvalho fosse conhecida como uma heroína do Holocausto, mas não vê más intenções. "Os ativistas que batalharam pelo título de justa, o Memorial, os depoentes… todo mundo agiu de boa fé, o problema é que a história que foi criada não corresponde à realidade", diz ele.
"Eu sei que esse é um tema espinhoso, que mexe com o sentimento das pessoas e que a gente deixa decepcionado quem acreditou nessa história, mas o trabalho do historiador é esclarecer os fatos."
Esse trabalho, no entanto, não acaba por aqui. Koifman diz que assunto vai render um livro, mas prefere fazer mistério sobre os próximos capítulos.
"A gente quis falar primeiro sobre os vistos porque era a forma mais simples de mostrar que o gato subiu no telhado sobre essa história e preparar as pessoas para o que elas vão ouvir depois. Dá enjoo a história, não é legal."
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