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Televisão
Descrição de chapéu The New York Times

Documentário mostra como 'Vila Sésamo' sempre foi um programa político

Projeto da HBO usa imagens de arquivo para detalhar revolução da atração

Garibaldo, personagem do programa infantil Vila Sésamo Divulgação

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James Poniewozik
The New York Times

Existe uma regra na política dos Estados Unidos ou deveria existir: jamais entre em uma briga contra o Garibaldo. Você sempre vai terminar cuspindo penas, e o pássaro de 2,5 metros de altura sairá de lá cantando alegremente sobre o alfabeto.

Na eleição de 2012, Mitt Romney defendeu repetidamente o corte aos subsídios federais para a TV educativa e defendeu que o muito querido personagem dividisse a tela com publicidade –"lamento, mas o Garibaldo vai ter que se acostumar com os sucrilhos Kellogg’s", disse o candidato, o que o expôs a ataques de que se preocupava muito mais com Wall Street do que com Sesame Street (Vila Sésamo, em português).

Em novembro, o senador Ted Cruz, republicano do Texas, se tornou o político mais recente a ceder à tentação de atacar aquele reluzente alvo amarelo. Depois que a conta de Twitter do Garibaldo anunciou que ele tinha se vacinado contra a Covid-19 como parte de uma série de especiais da CNN e de Vila Sésamo sobre a vacinação infantil, Cruz definiu o tuíte como "propaganda do governo... dirigida ao seu filho de cinco anos de idade!"

Deixe de lado a dúbia afirmação de que promover a vacinação infantil, uma meta básica da saúde pública e do sistema escolar, é "propaganda do governo". Desconsidere que Cruz ignora o fato de que Garibaldo já tinha sido usado para promover vacinas contra o sarampo cinco décadas atrás. (Cruz, afinal, é o mesmo gênio da cultura que achou que seria uma sacada genial definir o Partido Democrata como "o partido de Lisa Simpson".) E esqueça que, há décadas, pais progressistas e pais conservadores amam Vila Sésamo por sua aversão ao comercialismo e sua singeleza.

Apesar de tudo isso, Cruz estava certo pelo menos quanto a uma coisa: Vila Sésamo é político, e foi político desde o começo. Político não no senso partidário, mas porque a maneira pela qual educamos e protegemos nossas crianças –e escolhemos que crianças proteger e ensinar– está inevitavelmente vinculada a ideias politizadas.

Esse, além das lembranças carinhosas sobre Ênio, Beto e o Conde, é o foco de um documentário doce e envolvente, "Street Gang: How We Got to Sesame Street" ("Gangue da Rua: Como Chegamos à Vila Sésamo, em português), dirigido por Marilyn Agrelo, que estreou esta semana nos Estados Unidos, na HBO. Baseado no livro "Street Gang: The Complete History of Sesame Street", de Michael Davis, o documentário usa imagens de arquivo e novas entrevistas para detalhar os anos iniciais da revolução dos marionetes.

Vila Sésamo, que estreou em 1969, foi uma ideia de Joan Ganz Cooney, executiva de TV que estava mais interessada no movimento dos direitos civis do que em educação, mas veio a perceber a conexão ente as duas coisas. "As pessoas que controlam o sistema leem", ela disse, "e as pessoas que conseguem subir no sistema leem". E Cooney acreditava que, paradoxalmente, a melhor maneira de convencer as crianças da década de 1960 a ler era por meio da televisão.

A Children’s Television Workshop, a empresa de Cooney, reuniu educadores e artistas, entre os quais um criador de marionetes chamado Jim Henson e o diretor de televisão Jon Stone, um idealista que acreditava na ideia de Cooney de reduzir a disparidade de alfabetização em meio às crianças negras de áreas urbanas pobres. "Acho que o que atraiu meu pai foi a visão política dela", disse Kate Stone Lucas, filha do diretor (morto em 1997), no documentário.

Como "Street Gang" revela, o cenário mesmo do show –uma rua de cidade e não um castelo de fantasia ou uma casinha idílica no subúrbio– dizia alguma coisa sobre as crianças que o programa gostaria de acolher. O elenco racialmente diverso de adultos e crianças também tinha algo a dizer. "Vila Sésamo" era um programa aberto, público e real, tão real quanto pode ser um quarteirão em que seres humanos convivem com monstros de pelúcia.

"Eu sempre entendi o programa como político", disse Sonia Manzano, que interpretava Maria, devido ao elenco e à determinação de promover diálogos sobre raça que as crianças de TV não estavam acostumadas a ter.

Matt Robinson, o primeiro ator a interpretar Gordon na década de 1970, veio a dar voz ao muppet Roosevelt Franklin, criado para representar as crianças negras da plateia. A cantora Buffy Saint-Marie amamentava um bebê enquanto explicava amamentação a Garibaldo. O reverendo Jesse Jackson comandou um coral de crianças em um chamado e resposta de "eu sou alguém!"

Garibaldo, que evoluiu já no começo do programa de um trapalhão desastrado para uma criança curiosa, muitas vezes servia como substituto dos jovens espectadores, exatamente como aconteceu quando ele emprestou uma de suas asas para ensinar às crianças sobre vacinação.

O exemplo mais memorável e comovente surgiu quando Will Lee, o ator que interpretava o lojista Mr. Hooper, morreu. O programa transformou a morte dele em parte de um episódio no qual Garibaldo aprende que, quando as pessoas morrem, elas não voltam.

Já desde a estreia, Vila Sésamo era uma raridade: um sucesso no mercado de massa criado por uma rede pública de TV, um programa infantil com uma dose forte de sofisticação e uma forte vibração de contracultura. O programa surpreendeu até as pessoas que o faziam.

"Estávamos filmando o programa e lá estava aquele pássaro feio", diz o operador de câmera Frank Biondo no documentário. "E eu fiquei imaginando quem se disporia a assistir àquela [palavrão]?"

Mas Vila Sésamo não era amado por todos. Uma comissão estadual de TV no Mississipi recusou licença para exibição local do programa por conta de queixas sobre o elenco racialmente integrado. Canais afiliados às redes de TV locais começaram a exibir o programa porque sabiam perceber um sucesso quando o viam, e a comissão por fim reverteu seu veto.

Hoje é fácil sentir superioridade com relação ao histórico racial do país ou esquecê-lo. Quando Vila Sésamo introduziu um muppet com origens coreanas, este ano, Matt Schlapp, presidente do Comitê de Ação Política Conservadora, classificou a adição como "insana" no Twitter. "Cresci assistindo ao programa e ele nunca teve coisa alguma a ver com raça", disse Schlapp à Fox News. (Por favor, avisem Roosevelt Franklin.)

"Street Gang" encerra sua história no final da era Jim Henson (ele morreu em 1990); Elmo só recebe uma menção passageira e décadas da história, o que inclui a transferência do programa principal para a HBO, passam sem menção. Com isso, o documentário não examina as mudanças de elenco e formato do programa ou a questão de se sua criação seria possível hoje, em uma era de muito mais opções televisivas para as crianças (embora quase todas muito mais comerciais).

Mas como mostram as escaramuças de guerra cultural, por exemplo os ataques de Cruz, mais coisas mudaram desde a estreia de Vila Sésamo do que o número de televisores disponíveis. A era de Lyndon Johnson e Richard Nixon, que nos deu o programa, também era polarizada, mas a série refletia ao menos um certo consenso, existente no século 20, sobre o papel das instituições, do governo à medicina e redes de TV.

Não era considerado absurdo que Washington assumisse um papel na educação das crianças por meio da mais popular das mídias de massa nacionais (o senador Barry Goldwater, do Arizona, que foi candidato ultraconservador à presidência, era um dos mais importantes defensores de Vila Sésamo em seus primeiros dias.)

Agora, em uma era de mídia e política fraturadas, personagens de um programa da HBO Max fazem um especial sobre vacinas na CNN e são atacados no Twitter por um senador que quer ganhar pontos políticos com a audiência da Fox News. O universo da mídia é muito maior do que quando Vila Sésamo tentou colocar o mundo inteiro em um só quarteirão. Mas hoje vivemos em bairros cada vez menores.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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