Ailton Graça diz que Florisval, de 'Totalmente Demais', é um parceiro tóxico com Maristela
'Ele tem desvios de caráter, com certeza', afirma o ator
Para Ailton Graça, 55, as primeiras semanas de quarentena foram um choque. "Eu gosto de multidões", diz o ator, que se viu impedido de seguir com suas atividades rotineiras como ir à padaria, à feira, ao teatro ou frequentar uma "boa roda de samba".
Por outro lado, Graça afirma que aproveitou o período para colocar os livros em dia e catalogar trabalhos que ainda estavam em DVD e VHS. "Foi gostoso ficar um pouco mais com a família, observar o tempo."
Tem sido um período também para rever "Totalmente Demais", trama de 2015 em reprise na Globo. Na história, o ator interpreta o motorista malandro e mulherengo Florisval, um papel que, segundo ele, foi uma composição bem delicada. "Ele tem desvios de caráter, com certeza", diz.
Para Graça, Florisval é um homem que não dialoga com o tempo atual e que tem grandes dificuldades de entender e fazer as mudanças necessárias. Ele diz concordar com sua parceira de cena, a atriz Aline Fanju que faz a Maristela na novela, sobre como o relacionamento amoroso entre os personagens era tóxico. "Ele é um parceiro abusivo tóxico, que hoje em dia, a gente, em vários grupos, está debatendo sobre a questão da masculinidade do homem negro, de como rever alguns lugares."
O que Florisval tem a favor dele, segundo destaca o ator, são a empatia e uma dose de humor. Graça diz que, sem esses dois ingredientes, ele ficaria muito rígido e não conseguiria gerar identificação com o público. "Todo o mundo conhece um Florisval, que está deslocado no tempo e no espaço", afirma.
Graça afirma também que o acidente de Wesley (Juan Paiva) foi um dos momentos mais importantes de Florisval na história. "Eu acho que foi quando o Florisval se viu mais pai e humanizou um pouco o personagem, que foi para outro lugar com a preocupação com a vida do filho", relata.
Quais são as lembranças de "Totalmente Demais" que você guarda?
Ailton Graça - Essa novela foi fantástica, uma grande surpresa para todos nós. Um elenco megaespecial, com pessoas queridas, em especial a Malu Galli [a atriz interpreta Rosângela, ex-mulher de Florisval]. Nós aproximamos de tal forma que hoje eu posso dizer que tenho na Malu Galli uma irmã querida. Somos amicíssimos, eu, ela, a família dela. Não conhecia o trabalho de Aline Fanju, e ela é muito talentosa, muito criativa. Ela, que até então estava fazendo alguns personagens um pouco mais carregados no drama, mostrou que tem um talento para desenvolver personagens cômicos muito bom. Foi um encontro maravilhoso. Juan Paiva e a Lellêzinha [a Jeniffer] viraram filhos de verdade. A gente não perdeu essa conexão e acabou fazendo outros trabalhos juntos.
Qual o perfil do seu personagem, o Florisval?
Ele é uma composição delicada, é um lugar difícil de você elaborar. Ele tem desvios de caráter, com certeza. Ele tem a favor dele apenas a empatia. A empatia, uma construção que a gente tem que deixar neste lugar, mas não esquecendo que ele é uma pessoa com um grande desvio de caráter e de conduta. Foi delicioso de desenvolver porque eu tinha parceiras e parceiros gigantes em cena, que possibilitavam a construção desse personagem com esse deslocamento temporal. Florisval não acompanhou todos os bate-papos do que é ser um homem no século 21.
Rosângela era mesmo o grande amor da vida dele? Ou um porto seguro que ele não conseguia abandonar?
Creio de verdade que Rosângela era o grande amor da vida do Florisval. Não era só uma questão de porto seguro afetivo. Porque o Florisval já tinha a vida dele, mas se comportava como um grande meninão. Isso também faz parte da construção de um personagem que tem essa comicidade. Seria difícil levar esse personagem sem essa gama do humor, de ser um personagem clownesco, porque senão ele ficaria rígido ao ponto de não criar nenhuma identificação. E muita gente se identifica com Florisval. Recebi o recado de muitos meninos dizendo que o pai era parecido, que o tio e o vizinho eram parecidos com ele. Todo mundo conhece um Florisval, que está deslocado no tempo e no espaço. Minha gratidão vai para a Malu Galli e Aline Fanju, que souberam trabalhar com o personagem que traz em si esse um milhão de problemas.
Em recente entrevista, a Aline Fanju comentou que só hoje vê como a personagem dela se submetia a um relacionamento abusivo com Florisval. Você faz essa leitura? De pensar Florisval como um parceiro tóxico para mulheres com quem ele se relacionava?
Concordo com a Fanju. Ele é um parceiro abusivo tóxico, que hoje em dia, a gente, em vários grupos, está debatendo sobre a questão da masculinidade do homem negro, de como rever alguns lugares. Penso que Florisval pode até ouvir determinadas coisas, escuta, mas não entende como é que esse processo se dá, de tentar fazer essa mudança no comportamento dele, de se policiar onde ele está sendo abusivo, onde a falha de caráter dele é gritante. Dificilmente ele percebe ou vá fazer esse movimento de entender e de mudar tudo isso. E o humor dele é o que o atrai para estabelecer uma conexão familiar, porque ele também não foi um grande pai.
Lembra de alguma história divertida de bastidores?
Não digo divertida, mas um dos momentos mais significativos na novela foi quando a gente gravou o acidente de Juan. Exigiu uma concentração tão grande de todos os atores, da nossa equipe, de toda a figuração que se empenhou muito para que a gente fizesse aquele acidente daquela maneira. Foi algo muito importante e significativo naquele momento e deu para nós uma comoção, uma emoção. Acho que foi o momento em que o Florisval se viu mais pai e humanizou um pouco o personagem, que foi para outro lugar com a preocupação com a vida do filho. Esse foi um momento importante para dar uma grande virada na vida desse personagem e o trouxe mais para terra.
Como tem sido sua rotina na quarentena?
No começo foi muito difícil a questão do distanciamento social. Não sei lidar muito com as redes sociais, tenho dificuldade de fazer lives, postagens. Tem momentos importantes e significativos que precisam ser preservados na nossa memória. Na contação de uma história, cada um vai contar de um ponto de vista e vai provocar no outro um ponto de imaginação que a gente não congela. Já tenho uma profissão que congela um determinado espaço de tempo na minha vida, faço novela, cinema. Gosto de estar próximo de pessoas, ouvindo e recebendo histórias. Não que isso não tenha hoje nas lives, nas redes sociais. Têm. Eu é que tenho dificuldade de ficar, de assistir.
Do que sente mais falta?
Para mim, o distanciamento foi ruim porque eu gosto de multidões. Eu gosto de Carnaval, de teatro. Eu gosto de uma boa roda de samba, eu gosto de ir à padaria, de ir à feira. Foi um choque não poder ir. Por outro lado, me possibilitou fazer aquela faxina que todo o mundo diz que vai um dia fazer na casa. Então eu fiz, consegui colocar em dia os meus livros, consegui catalogar algumas coisas ainda de DVD e VHS de alguns trabalhos. Foi gostoso ficar um pouco mais com a família, observar o tempo. Tivemos aí mais pássaros voando, a gente precisa olhar mais o dia, o céu pela janela. Foi e é importante. Ainda estou de quarentena e mantendo distanciamento social, e vendo que, aos poucos, está tendo essa flexibilização, mas estou acompanhando e estou apreensivo. Só gostaria de voltar para esses movimentos de multidão, como Carnaval, ensaios de escola de samba, shows e eventos com a vacina. A gente precisa de uma vacina. E precisamos ver também se esse povo vai voltar diferente.
Vi que apresentou sua peça "Solidão" em uma live. Acredita que esse seja um formato possível para o teatro se adaptar aos tempos de pandemia?
Foi importante como experimento, mas, para mim, a questão presencial é primordial e o teatro sintetiza todas essas mídias de comunicação que a gente utiliza agora, como o telefone, a imagem. Tudo isso é bacana, mas o teatro tem tudo isso numa potência máxima. Porque você está ali, com aquele grupo de pessoas, num grande ritual cênico. Com uma sala lotada e todas as pessoas estão respirando juntas, olhando juntas para um determinado quadro, onde tem um grupo de pessoas ou uma única pessoa num monólogo comunicando com a alma dela.
A pessoa se predispõe a sair da casa dela, de ir àquele teatro e ficar durante uma hora, duas ou três horas assistindo a um espetáculo, depois vai sair e falar desse rito. O teatro vai ser o último a voltar depois dessa pandemia, mas quando voltar, vai voltar com essa força que não tem nada igual. O teatro precisa e necessita da conexão, do tête-à-tête para o grande rito cênico. Lembrando que eu torço para que muita coisa faça mesmo sucesso. Muitas pessoas estão conseguindo mostrar trabalho nessas novas plataformas. Tem coisas fantásticas acontecendo, como a Teresa Cristina com esses encontros maravilhosos. Sei que tem muitas pessoas descobrindo, dialogando com seus fãs, ou olhando o outro. É uma fase boa para experimentar novas linguagens.
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