Sócrates peita técnico e mantém Democracia Corintiana
"Corinthians e Palmeiras caem para a 2ª divisão."
O que poderia ser um sonho para são-paulinos e santistas, na verdade, foi apenas a capa do jornal "Notícias Populares" do dia 19 de outubro de 1981. Naquele ano, os alvinegros amargaram a oitava colocação no Campeonato Paulista e a 26ª no Campeonato Brasileiro. Porém tudo mudaria nos meses seguintes.
O "Saiu no NP" desta semana relembra a cobertura do jornal sobre um time que fez história no futebol brasileiro, o time da "Democracia Corintiana".
Após campanha ruim no Campeonato Nacional de 1981 - o time terminou na 26ª colocação com quatro vitórias, três empates e oito derrotas -, o presidente Vicente Matheus deixou a presidência do Corinthians. Na sequência, assumiu Waldemar Pires, que logo escolheu o sociólogo Adilson Monteiro Alves como diretor de futebol do clube.
Na direção, Adilson Monteiro decidiu implantar um novo modelo de gestão. As decisões e a rotina do grupo passariam a ser definidas com a participação ativa dos jogadores, funcionários e comissão técnica. Nasceu aí a "Democracia Corintiana", que, em plena ditadura militar, promoveu um sistema de autogestão e auto-organização até então inaudito nos gramados do Brasil.
Da concentração às contratações, das demissões à escalação do time; tudo era decidido coletivamente. "Um homem, um voto"; este foi o lema que imperou no Coringão entre os anos de 1981 a 1984. Dentro das quatro linhas, craques como Wladimir, Biro-Biro, Casagrande e Doutor Sócrates davam show de bola. Fora delas, o time extrapolava as barreiras do esporte e discutia política e clamava por democracia ao pedir o fim do regime militar e a instauração das Diretas-Já.
Mas, como retratou o próprio "NP", nem tudo era perfeito. Como qualquer outro conjunto, o Corinthians também tinha atuações ruins. Nos bastidores, comentava-se que, devido à própria "Democracia", qualquer resultado negativo seria considerado pela torcida, diretoria e até imprensa como resultado da atmosfera menos conservadora do plantel.
Insatisfeito com as últimas exibições do Corinthians, especialmente contra o Botafogo de Ribeirão Preto na semana anterior, o treinador Jorge Vieira deu uma dura nos jogadores durante o treinamento em junho de 1983. A tensão foi flagrada pelos repórteres do "Notícias Populares". Atentos à beira do campo, os jornalistas registraram o técnico condenando a atitude de alguns atletas.
"Expliquei a maneira de jogar; como quero que o time se comporte em campo. Só isso. Muitos estão pensando que isto aqui é uma brincadeira. Falei da necessidade de uma maior conscientização profissional e assim por diante. Apontei as falhas do time. Mas não vou ficar entregando ninguém. Eu não estou descontente com a produção do time, mas, quando sinto que existe acomodação, tenho de falar mesmo. Estou aqui pra isso", declarou o comandante corintiano ao "NP".
O episódio foi publicado pelo jornal na edição do dia 22 de junho de 1983. A reportagem veio com o título "Uma punhalada nas costas de Sócrates - Vieira liquida a 'democracia do Corinthians'". Ao longo do texto, os repórteres destacaram uma repentina mudança na rotina dos jogadores em razão da ausência do maior craque da equipe, o líder Doutor Sócrates. A reportagem narra que, em viagem pela seleção brasileira, o atacante não pôde ver o técnico corintiano decretar a volta da concentração para todos os jogadores. Pouco tempo atrás, no começo do ano de 1981, Sócrates havia sido o principal responsável pela suspensão da norma. Na entrevista coletiva, o treinador justificou a atitude e garantiu que os atletas solteiros teriam solicitado a concentração válida para todos. Dias antes, o mesmo técnico tinha fixado a concentração apenas para os atletas não casados.
"Todos me pediram. Aqui nós vivemos o time da democracia. Por isso todos os jogadores vão para a concentração às 21 horas", decretou Jorge Vieira. A declaração publicada no "NP" gerou expectativa no plantel, que aguardava a volta do craque depois de atuar pela seleção.
Uma semana depois, na edição de 29 de junho, o desfecho do caso. "Vieira afina e aceita 'Democracia'". Ao parafrasear o vocabulário político da época através do jornalismo esportivo, o jornal alfinetava o regime que assolava o país pelo menos havia 18 anos. Cunhado no seio do próprio grupo, o termo soava como uma afronta em meio a um período no qual votar livremente não era possível.
"No primeiro round, Sócrates nocauteou o autoritarismo de Jorge Vieira", escreveu o "NP". Em tom de ameaça de saída do Corinthians, o Doutor fez uma revelação ao jornal e disse que seguiria lutando pelos direitos dos jogadores: "Vamos continuar lutando pela Democracia Corintiana. Esse é um ponto de honra e, se fosse diferente, eu não estaria mais aqui".
Enquanto isso, o técnico estava à frente de um time que já não vencia havia quatro jogos do Campeonato Paulista daquele ano, marcado por 12 vitórias, cinco empates e duas derrotas. Rachado entre casados e solteiros, o Corinthians estava ameaçado de perder seu treinador em caso de mais uma derrota. Por outro lado, os alvinegros corriam o risco de perder também um de seus maiores craques. Sócrates condicionava sua permanência no Timão à suspensão da concentração.
Em meio à queda de braço entre técnico e jogador, o diretor de futebol Adilson Monteiro Alves ficou do lado dos atletas e declarou ao "NP" que eles é que decidiam. Para o "Notícias Populares", que publicou na capa "Sócrates ameaça e derruba linha dura", o atacante tinha saído vitorioso do embate. Restava saber se, depois do baque, o time se recuperaria na competição.
A resposta veio rodada a rodada até o dia 15 de dezembro de 1983, quando o jornal publicou a conquista do bicampeonato paulista 1982/83 pelo Corinthians. Na capa, "Aguenta coração: Corinthians bicampeão". Definitivamente, a taça era a consagração da "Democracia Corintiana". Durante todo o torneio, cuja artilharia foi de Casagrande com 28 gols marcados, Sócrates conferiu 21 vezes. Após a temporada vitoriosa, o conjunto podia descansar.
No ano seguinte, o Corinthians não logrou o mesmo êxito.
A temporada, além de marcar a perda de seu maior ídolo -Sócrates seria vendido para os italianos da Fiorentina-, viu o fim da magia.
Contudo, aqueles últimos 12 meses, marcaram uma era. De jogadores a cidadãos, os atletas saíram às ruas reivindicando voto livre num país sob julgo da ditadura militar.
O "Notícias Populares" registrou os momentos de engajamento político e de futebol arte.
Em 1984, as páginas do diário publicaram a decepção da equipe após a derrotada nas semifinais do Campeonato Brasileiro para o Fluminense. Mas o time já estava na história, com o lema "um homem, um voto" e "ser campeão é um detalhe" (frase eternizada por Sócrates). Vai Corinthians!
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